Gênesis 40

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O autor apresenta o cenário em que a salvação do povo de Deus é providenciada através do sofrimento do Messias.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 40
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Após a introdução à narrativa em que Judá e José são apresentados e inseridos em suas sagas, e progridem no processo de representação redentiva/messiânica, Moisés retoma - embora já o tenha feito ao final do capítulo 39 (cf. Gn 39.21-23) - aos fatos concernentes a saga de Jacó através de José, que, estando este no Egito, é submetido à circunstâncias que o centralizarão como instrumento divino para salvação do povo de Deus.
Como analisado, os desdobramentos da narrativa se encarregam de demonstrar que através de José, a saga messiânica deverá começar com humilhação e sofrimento, proporcionando assim o livramento de seu povo da calamidade, sendo ao fim enaltecido, tendo seu posto de "salvador" publicado à todos.
Embora tenha saído das cisternas de Dotã e do poder da caravana ismaelita, para ser mordomo-chefe na casa de Potifar, essa rápida melhora na situação de José é novamente interrompida, ao ter baixado (injustamente) à prisão. Contudo, o capítulo 39 termina preparando o cenário para outra reviravolta na história: "O SENHOR era com ele [José], e tudo o que ele fazia o SENHOR prosperava".
A expectativa lançada pelo autor sobre os leitores/ouvintes remete ao padrão iniciado antes: assim como o SENHOR fora com José e por isso foi bem-sucedido na casa de Potifar, novamente deverá haver um momento em que a graça divina lhe favorecerá, mesmo agora nas masmorras do Egito.
A estada de José no cárcere, tendo contato com servos diretos de Faraó, para os quais oferece interpretações de sonhos que apontam para acontecimentos futuros, é o ensejo usado por Moisés para declarar aspectos ainda mais profundos da obra redentiva. O encaminhamento providente mediante a exposição da vontade divina através da elucidação de eventos futuros, aproxima José ao Messias.
À luz da metanarrativa canônica, a divulgação da vontade divina mediante a pregação do Evangelho, é o meio através do qual o Novo Testamento publica a chegada do Reino, e o momento do cumprimento da Aliança da Redenção, prometida pelos profetas anteriormente.
Cristo Jesus declara a sabedoria do Pai, através do desenvolvimento tanto de sua obra messiânica, isto é, sua carreira de sofrimento e humilhação, quanto por meio da pregação e anúncio da salvação aos eleitos de Deus.
Em face dessa compreensão, Gênesis 40 demonstra a representação messiânica da ação providencial mediante publicação do governo divino.
Elucidação
O autor claramente exibe suas intenções de demonstrar que todo o desenrolar da trama está acontecendo sob o controle divino, como já mencionado. O comentário enfático de que dois servos de faraó são conduzidos ao cárcere onde José estava (cf. vs. 2; 4; 5), depõe a favor dessa compreensão.
A condução dos eventos segundo a vontade divina não somente expressa o controle do Criador naquela situação, mas também serve como ênfase para o trato exortativo do autor para com o povo de Israel. Desde o primeiro momento em que esta parte da história de Jacó é contada, a noção de que o SENHOR está por trás dos fatos, é a base que sustenta a compreensão de que não se trata de uma história comum, e sim da narrativa redentiva ou salvadora que culminará com a exposição da glória de Deus, em fidelidade à sua palavra pactual de suscitar um povo e salvá-lo, tal como referido à Abraão (cf. Gn 15.13-16).
Agora, no cárcere, José se depara com dois sonhos tidos pelos chefes dos serviços reais de faraó, e ao expor estes suas perturbações com relação aos sonhos, José (diferentemente do que criam os egípicios) alude que apenas o SENHOR poderia fornecer as devidas significações.
A interpretação dos sonhos, segundo o costume antigo, era algo reservado aos especialistas: homens que, ao consultar documentos antigos que narravam fatos semelhantes com relação a sonhos, os podiam interpretar. (WALTON, 2018, p. 88). Essa informação torna a interpretação de José ainda mais notável: como alguém que não tem o conhecimento especializado na arte de interpretar sonhos, pôde fazê-lo com tanta precisão? O questionamento remete ao fato de que a elucidação realizada por José era derivada da sabedoria concedida pelo próprio Deus, o que novamente incorria numa grande anomalia, pois, segundo acreditava-se, os deuses de fato comunicavam-se com os homens por meio dos sonhos, porém, nunca os interpretavam ou davam eles mesmos a significação.
Aqui Moisés introduz uma antagonia entre Deus e os costumes pagãos do egípcios, demonstrando perspectivas completamente diferente entre os dois povos, fazendo uma clara distinção quanto a interpretação dos fatos para ambas as etnias (embora os egípcios tenham chegado a mesma conclusão, ao experimentarem o derramar das dez pragas), tanto ocorridos na vida de José, quanto em relação à tudo o que acontecera ao povo de Israel no episódio do êxodo. O fato de o filho de Jacó anunciar o que há de acontecer mediante a sabedoria divina a ele concedida, expande a noção já comentada do governo divino da história. A intersecção da narrativa de José no cárcere, se encarrega de explicar como José sairá de lá, embora ao final da narrativa seja dito que o copeiro-chefe havia se esquecido de José (cf. v.23).
As cenas vividas por José montam um cenário constrastante em que Deus o guia através de um intricado caminho, para que ao final sua glória seja ainda mais evidente na salvação de Jacó e seu povo. Sonhos levaram José ao "cárcere", e agora, Moisés desenha o cenário em que sonhos o tirarão lá. Apesar de a providência ter reservado dor e sofrimento a José, seu obscuro estado atual começa a mostrar-se como uma ante-sala para sua ascensão.
Transição
A conexão histórico-redentiva com a experiência do Messias, à luz do contexto intra-canônico, se mostra notória. Aquele sobre quem grande expectativa está lançada, antes de ver efetivada sua obra, passar por percalços e lutas, que o baixam a mais excruciante situação, porém, o cenário adverso monta o palco perfeito para que sua glorificação torne-se ainda mais majestosa. Cristo Jesus, o perfeito "José", é submetido a vontade injusta e corrupta dos homens, somente para que ao fim do caminho, assente-se sobre o trono do mundo, donde governa a tudo e a todos.
Gênesis 40 treina os olhos e ouvidos dos leitores/ouvintes do texto, para compreender que todo o trajeto empreendido tanto por José, quanto futuramente por Cristo (para quem aquele apontava) está sendo guiado pelas mãos cuidadosas e providentes de Deus. E assim, todo o doloroso processo apresentado pelo texto, redunda em glória e honra ao SENHOR, que por meio de tais caminho glorificará seu nome na salvação de seu povo.
Esses princípios são direcionados pelo autor divino/humano como diretrizes a serem vividas por todos aqueles que depositam sua fé no Deus de Jacó. Assim, devemos observar alguns pontos para nossa meditação à luz deste texto.
Aplicações
1. Entendendo que José é um tipo de Cristo, devemos perceber que todo o trajeto doloroso pelo qual Cristo Jesus passou, fazia parte do grandioso plano redentivo, através do qual fomos resgatados.
A dura jornada de José reflete o caminho ainda mais excruciante e penoso trilhado por Cristo. De uma situação de humilhação (e.g. a traição de seus irmãos em Dotã) para outra ainda pior (e.g. seu injusto encarceramento), José experimenta dores e desconfortos sendo inocente de qualquer crime, como ele mesmo alega no versículo 15.
Cristo Jesus, estando já numa condição de humilhação, ao ter baixado de sua glória, assumindo a forma de servo (Fp 2.7), foi ferido pelos nossos pecados e submetido à uma provação ainda mais árdua: suportar toda a ira divina sobre si, e as ofensas das nossas transgressões na cruz do monte Calvário.
O texto de Gênesis 40, por outro lado, não deve nos remeter à algum tipo de comiseração por Jesus, mas entendendo que cada passo nesse caminho foi esquematizado e cuidadosamente preparado por Deus, para que por meio dele, fôssemos salvos e trazidos de volta aos braços do Pai, devemos glorificar ao SENHOR que desprendeu tamanho favor para conosco.
Temos visto que a jornada da história da redenção em Gênesis é cheia de altos e baixos, porém, se prestarmos atenção a cada detalhe dessa gloriosa narrativa, daremos muito mais valor ao sacrifício de nosso SENHOR. Como profetizou Isaías: "o castigo que nos traz a paz estava sobre ele" (Is 53.5b) e através da história de José, temos um vislumbre ainda mais completo do que foi esse castigo.
Contudo, jamais devemos esquecer que na Bíblia, sacrifício e providência andam lado-a-lado, e assim como SENHOR esteve com José ao longo de todo seu percurso, o Pai esteve com seu bendito Filho, guiando-o pelo poder do Espírito, para que, voluntariamente entregasse sua vida em nosso favor.
"Não pertencem a Deus as interpretações?" a declaração de José centraliza a Deus na história, dando-lhe toda a glória ao longo da narrativa. Aqui se encontra outro ponto de contato entre José e Cristo: ambos, guiados pela providência, concentram-se em fazer transparecer que todas as facetas de suas histórias devem redundar na glória do Criador. Do fundo de uma masmorra, ou do alto de um madeiro, a glória do Deus Triuno resplandece, e a salvação de seu povo é executada.
Porém, o autor divino/humano, também usa a narrativa de José (e, figurativamente, do Messias) como parâmetro para a jornada de cada filho de Deus em particular, o que nos leva ao segundo ponto de nossas aplicações:
2. Embora Deus, algumas vezes, nos guie por caminhos tortuosos, devemos lembrar que não há melhor trajeto do que aquele determinado por Deus.
Caminhando por um deserto escaldante, cheio de possíveis perigos e adversidades, o povo de Israel é exortado pelo texto de Gênesis 40 a se lembrar que os mais duros e complicados percursos, também foram providenciados pelo SENHOR como meios através dos quais o nome do Criador será glorificado.
Aquilo que José experimentou como preparação para que, com propriedade, pudesse salvar seu povo da fome que assolaria Canaã e circunvizinhanças, e que o Messias experimentaria para redimir o povo de Deus, a própria igreja do SENHOR deve experimentar como parte da jornada redentiva para a qual foi chamada a trilhar.
Através das águas turvas e agitadas desse mundo, nosso barquinho vai sendo guiado aos poucos para o porto seguro que é Cristo, e até lá, nosso caráter vai sendo moldado pelo SENHOR, que nos faz depender de sua providência.
Calvino, comentando esse texto, afirma essa compreensão ao ver a ótica providencial no aperfeiçoamento do próprio José através dessas circunstâncias:
[…] A providência de Deus guiou o santo homem [José] por espantosas e difíceis veredas. […] Quando poderia libertar imediatamente o santo homem da prisão, ele prefere conduzi-lo por veredas tortuosas, a fim de melhor provar sua paciência e manifestar, pelo modo de seu livramento, que possui maravilhosos meios de operação, ocultos aos nossos olhos. Ele age assim para que possamos aprender a não julgar, de acordo com nosso próprio entendimento, a salvação que ele nos prometeu, mas para que nos deixemos ser levados de um lado para outro por sua mão, até que ele complete sua obra (CALVINO, 2019, p.337-338).
Tal como foi com José, ocorre em nossas vidas: os caminhos da providência incluem obstáculos e trechos bastantes adversos, porém, se lembrarmos que quanto maior a dor, maior glória será dada a Deus, poderemos ser fortalecidos a fim de permanecermos fiéis a esse santo propósito; não por algum tipo de mórbido masoquismo, como se fôssemos procurar o sofrimento por conta própria, mas sim que, se ele bater à nossa porta, deveremos pacientemente deixá-lo entrar, a fim de que nosso caráter sejam mais intensamente forjado, tal como aço pelo fogo, para que brilhe a luz de Cristo mais intensamente sobre e através de nós.
Conclusão
O paradoxo evangélico da providência divina, cedo é exibido na Escritura: Deus escolheu os mais aparentemente feios e horrendos caminhos para revelar sua glória: o sofrimento aponta para a grandeza, de formas que, as masmorras de uma prisão e a rigidez de uma cruz, ressaltam o grande e profundo amor de Deus por seu povo, fazendo dessas coisas, instrumentos de sua salvação.