Gênesis 32.1-32

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O autor registra o episódio do encontro teofânico entre Jacó e Deus, que demarca o momento em que as promessas redentivas são confirmadas ao patriarca mediante a transformação e mudança na vida do mesmo, prefigurando a mudança salvadora executada na vida de todo o povo de Deus.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 32.1-32
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Após desdobrar os eventos e experiências usados para demonstrar a fidelidade divina em cumprir o pacto abraâmico, progredindo a temática da benção redentiva sobre o eleitos de Deus livrando-o dos inimigos, agora Moisés exibe o fluxo histórico da jornada de Jacó de volta a terra de Canaã, jornada esta que está sendo apresentada em paralelo aos mesmos percursos empreendidos pelos patriarcas anteriores (i.e. Abraão e Isaque).
Entretanto, não somente a jornada em si é estruturada paralelamente, mas também os eventos que eclipsam tal peregrinação, agindo na vida dos personagens através de experiências que demarcam um ponto de virada em que a compreensão redentiva é enfatizada, a fim de que a fé dos patriarcas seja maturada ao ponto de vislumbrarem (perifericamente (cf. BEALE, Vida Nova: 2014, cap. 1)), a própria consumação da restauração cosmológica através do Descendente prometido (i.e. Jesus Cristo).
Como exemplo desse tipo de clímax temos Gênesis 22, em que Abraão é exposto à operação substitutiva como base para salvação a ser executada pelo Messias, como garantia do recebimento da herança e cumprimento da promessa divina, também Gênesis 26.17-25, em que Isaque, triunfa sobre os filisteus, tomando posse de suas terras (de modo representacional), e recebe a visão divina que garante a mesma herança mediante a menção pactual (e.g. "Eu sou o Deus de Abraão teu pai. Não temas, porque eu sou contigo; abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência, por amor de Abraão, meu servo" (Gn 26.24).
É chegado o momento em que Jacó deparar-se-á não somente com uma teofania que lhe confirmará os termos do pacto, fortificando sua fé, mas o fará contemplar a encenação divina da obra redentiva, que lhe proporcionará a confiança de que precisa para confiar final e totalmente no Deus de seu Pai, agora também como seu Deus e Redentor.
Assim, a tese central de Gênesis 32 é o encontro teofânico como marco transformador da obra redentiva.
Elucidação
O contexto da partida de Jacó após ter resolvido o conflito com Labão, encaminha a atenção do leitor para os próximos episódios da saga, ao que no versículo 3 e 4 o autor registra sua intenção de introduzir a temática a seguir: a reconciliação de Jacó com seu irmão Esaú.
Essa ocasião enseja para o autor não somente a reconstrução dos laços entre os irmãos - embora tal reconciliação não proponha a inserção de Esaú no pacto abraâmico, ou seja, ele não se tornará beneficiário da obra redentiva -, mas também, como já dito, o episódio registra o momento em que Jacó experimentará a transformação de que precisava para abandonar de vez qualquer dúvida quanto a situação de escolhido do SENHOR, e portanto, ferramenta através da qual o Criador está levando adianta seus planos.
A interferência dessa temática para os leitores/ouvintes do texto, lhes proporciona a compreensão já clarificada (e aqui reenfatizada) de que suas origens remontam aos patriarcas eleitos por Deus para serem seu povo. A descendência israelita ascende até Jacó, cujo o toque divino o fez ser Israel, isto é, príncipe de Deus.
A aproximação temática entre a reconciliação de Jacó com Esaú com a obra transformadora que é executada na vida do patriarca, é o horizonte conceitual através do qual o autor descortina a saga redentiva.
Ao partir para encontrar-se com seu irmão, separando de seu rebanho um presente que lhe pacificasse a presença nas terras de Esaú (cf. v. 5), Jacó demonstra uma predisposição em reparar os danos do engano executado por ele e sua mãe no passado, e assim, uma mudança na identidade do personagem vai sendo construída com o propósito de exibir outro progresso nos planos divinos.
Porém, tal reconciliação precisa ser mediada e operada por Deus, a fim de que o coração de Esaú seja apaziguado. Cônscio disso, Jacó recorre ao Deus de Abraão e de Isaque, fazendo menção à Aliança anteriormente estabelecida e estendida a ele como base de sua fé, buscando alcançar tamanho graça.
Essa reaproximação sugere a maturação da fé de Jacó em que, em primeiro lugar, é exibido sua confiança em Deus como galardoador seu, assim como ele demonstra ao referir-se ao SENHOR em oração, lembrando do voto que fizera em Betel: "Sou indigno de todas as tuas misericórdias e de toda a fidelidade [...] pois com apenas o meu cajado atravessei este Jordão; já agora sou dois bandos" (v.10). Em segundo lugar, a resolução do conflito com seu irmão, figura a transformação da reputação do patriarca: em Gênesis 27, a mácula do engano lhe foi posta e lhe perseguia, porém, ao lutar com o Homem e ter seu nome mudado, a obra redentiva intersecciona a narrativa da reaproximação dos dois irmãos, tornando Jacó digno de estar na presença de seu irmão, como um príncipe de Deus.
Após toda a preparação dos rebanhos que irão adiante da comitiva principal, Jacó aparta-se (v.21), atravessando um val (i.e. passagem ou entrada através de um rio): o vau de Jaboque. Segundo análise das circunstâncias e da consideração cultural da época com relação a esses locais:
Lugares de passagem funcionam como portões. Ambos são passagens que permitem a entrada e a saída de um território. Ambos têm valor estratégico para os exércitos. Por essa razão, estão associados a poderes tanto físicos como sobrenaturais. Logo, não é difícil imaginar que haja uma ligação entre a entrada de Jacó na Terra Prometida, e sua luta com um ser sobrenatural à beira das águas, na passagem do rio Jaboque (WALTON, 2018, p. 80).
Ao transpor o vau, que se situava nos entornos do local que o próprio Jacó batizara com o nome de "Maanaim" tendo em vista ter percebido que se tratava do "acampamento" de Deus (cf. v.2), o patriarca estava no limite da Terra Prometida, e a tensão a seguir, como já dito, torna aquele local um ponto chave para os desdobramentos do cumprimento pactual que garante à prole de Abraão a obtenção do símbolo da promessa de redenção: a terra de Canaã.
Do versículo 22 até o fim da seção a cena muda: após atravessar sua duas mulheres e seus filhos para o outro lado do rio (vs. 22-23), abruptamente o narrador apresenta Jacó em um conflito com um personagem referenciado apenas como "um homem" (v.24). Essa figura enigmática que aparece na luta com Jacó, é identificada no texto como o próprio Deus em uma teofania antropomórfica (aparição que é introduzida desde os versículos 1 e 2), por ocasião tanto de uma fala, em que sugere sua identidade (cf. "pois como príncipe lutaste com Deus" v.28), quanto do próprio comentário feito pelo personagem ao nomear o local da luta: Àquele lugar chamou Jacó Peniel, pois disse: Vi Deus face a face" (v.30).
Segundo já comentado, o encontro com Deus coloca Jacó na mesma condição dos patriarcas anteriores que, ao depararem-se com uma teofania, receberam informações cruciais (embora em forma germinal) quanto ao desenvolvimento dos planos redentivos. Jacó, ao lutar com o homem, busca uma "benção", e sua insistência garante a obtenção da mesma: o Homem muda o nome de Jacó.
A alteração do nome neste ponto do texto é uma conexão direta ao episódio de Gênesis 17, em que o selo pactual é concedido a Abraão como sinal da redenção, e naquela ocasião, o patriarca tem seu nome mudado, representando as intenções divinas ao usá-lo como ferramenta na história salvífica. Em Gênesis 32, o enganador é redimido, recebendo em sua carne um demonstrativo da transformação operada pelo Criador: "Vendo este [o Homem] que não podia com ele, tocou-lhe na articulação da coxa; deslocou-a a junto da coxa de Jacó, na luta com o homem" (v.25).
A obra salvífica é operada mediante a transformação de alguém indigno, em filho de Deus. Aquele que antes estava marcado pelo pecado e pela culpa, agora é marcado com um lembrete de que as promessas pactuais se aplicam a ele, e a todos quantos depositarem sua fé no Deus que transforma pecadores em príncipes seus.
Transição
A intersecção narrativa do encontro de Jacó com Deus e sua luta pela benção, ao episódio de reconciliação entre o patriarca e Esaú, delimitam as intenções do autor de proporcionar aos ouvintes/leitores do texto de Gênesis 32, a ideia de transformação através da obra redentiva. Não que o encontro em si possua conotações salvíficas, pois, como dito, Esaú não faz parte da aliança salvadora estabelecida pelo Criador com os patriarcas anteriores. Porém, a temática da reconciliação encerra a mudança de paradigma na vida de Jacó.
Antes, aquele sobre quem repousava a fama de ser enganador e trapaceiro, agora tem sua fé na Aliança renovada, a tal ponto de ser transformado em alguém digno de ser reconhecido como "príncipe de Deus" (v.28).
O encontro de Jacó face a face (hb. "פָּנִ֣ים אֶל" = "face de Deus") com Deus, é usado pelo autor como demonstrativo do que ocorre a todo aquele que foi chamado para pertencer ao povo do SENHOR: a transformação redentiva apaga as transgressões, ao ponto de tornar o indivíduo em uma nova criatura aos olhos do Soberano. O pecado dá lugar à dignidade; o medo ou receio são substituídos pela confiança, e o nome do próprio SENHOR é posto sobre aquele cujo o título era marcado pela iniquidade.
Dessa forma, os princípios abordados pelo autor através do texto, aplicados à vida do seu público-alvo, percorrem a história redentiva, alcançando a igreja de Cristo hoje, mediante as seguintes observações.
Aplicações
1. O encontro com Deus em seu Messias, Jesus Cristo, asseguram nossa redenção, mediante a transformação por ele operada.
Como dito, o conflito entre Jacó e Esaú foi iniciado com a publicação da benção redentiva sobre o eleito do SENHOR em detrimento do réprobo. Entretanto, o modo através do qual ocorrera tal anúncio, acarretou a estigmatização de Jacó, e essa caracterização negativa - que o atribuía ao pecado - deveria ser anulada e finda, a fim de que este representasse adequadamente o povo de Deus, e assim, o SENHOR encontra-se com Jacó a fim de mudar-lhe o nome, garantindo-lhe a propriedade da Aliança que agora o fará ser reconhecido como integrante do povo de Deus.
Analogamente, o mesmo ocorre com cada eleito do SENHOR. Em algum momento de nossa história, "pecado" e a "iniquidade" eram nossos nomes. Éramos reconhecidos por nossa devassidão e depravação, independentemente do fato de que isso possa ter sido uma realidade mais intensa em uns, e menos em relação a outros.
Fomos reconciliados com nosso Deus mediante a transformação de nossas vidas, e agora, podemos erguer a cabeça como filhos adotados pelo Criador, que carregam seu nome, agindo nesse mundo como embaixadores do Reino dos céus, aguardando a consumação da promessa.
2. Essa transformação consiste na mortificação do pecado, o que muitas vezes pode implicar em sofrimento e desconforto.
Em sua luta com o anjo, Jacó teve sua coxa ferida: um sinal de que para lograr êxito diante de Deus, o esforço humano deveria dar lugar a fé. A luta não era uma prova através da qual a intenção divina era recompensá-lo caso vencesse, é porém, uma demonstração de misericórdia da parte do Criador, pois, mediante um renhido combate, é concedido ao patriarca a vitória, não sobre de Deus, mas da parte de Deus.
Tal conflito figura também a luta pessoal de cada crente contra o pecado, a fim de que fazer prevalecer a Aliança, vivendo de maneira própria de um filho de Deus. Em nota a Bíblia de Estudo Herança Reformada expõe:
"Assim como Deus mudou o nome de Jacó para Israel, por meio de uma experiência dolorosa, Deus também muda em nós tudo o que precisa de transformação, sejam em nosso temperamento ou personalidade - às vezes, por meio de circunstâncias de sofrimento - com o fim de nos fazer crescer dia a dia à imagem de seu Filho, Jesus Cristo" (Bíblia de Estudo Herança Reformada, 2018, p. 57).
O desconforto da luta contra o pecado é um lembrete: tendo lutado com Deus, Cristo Jesus, foi ferido, a fim de que seu sofrimento pudesse nos proporcionar a mudança de que precisávamos: a libertação do poder do pecado, para vivermos para o SENHOR, nosso Deus. Por sua vez, nós vivemos à luz desse combate: todos os dias, fazemos morrer o velho homem, e devido a isso, manquejamos na nossa caminhada rumo à Canaã celestial, porém, não mais como escravos do pecado, mas como filhos de Deus: príncipes e princesas do Rei.
Conclusão
A transformação de Jacó em um príncipe demonstra o fruto da redenção proposta pelo plano salvífico exposto desde o início do mundo, quando o Criador julgou o pecado: seu povo seria restaurado à sua presença, recebendo a dignidade de estar com o SENHOR, sem que a ignomínia do pecado o assombre.