Gênesis 29.31-30.24

Série expositiva no Livro de Gênesis  •  Sermon  •  Submitted
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O autor clarifica e reforça o conceito do governo soberano e providente de Deus no curso da história da redenção, guiando e controlando inclusive os vícios dos personagens que escolhe para serem agentes da execução de seus planos, proporcionando o cumprimento da promessa abraâmica, através da qual os eleitos são edificados com a esperança redentora.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 29.31-30.24
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Após o episódio da chegada de Jacó às terras orientais, nas quais habitavam os parentes de sua mãe Rebeca, e tendo exposto por meio dessa narrativa o desenvolvimento dos planos redentivos do SENHOR, provendo ao portador da bênção divina esposas que manifestarão a mesma fé das matriarcas anteriores (i.e. Sara e Rebeca), fazendo com que a linhagem santa prossiga pura, Moisés também passa a demonstrar como a providência divina proporciona que o cumprimento da promessa abraâmica seja efetivado, por meio do surgimento de uma linhagem numerosa, representada pelos filhos de Jacó com suas esposas.
Esse quadro conceitual é significativamente importante para a execução dos planos divinos, pois a promessa de que a partir de Abraão todo um povo seria concebido, também garante que deste povo virá o Descendente Prometido; Aquele que fará com que todo o povo eleito de Deus desfrute das bênçãos proferidas aos patriarcas. Benção e salvação; linhagem e redenção, são temas que são aproximados de tal forma pelo autor, que agora, mediante o desenrolar de Gênesis 29.31-30.25, são visto sob um mesmo prisma: a prole de Jacó.
Com base nessas considerações, o foco central do texto de Gênesis 29.31-30.25 é o início do cumprimento da promessa abraâmica de uma descendência como sinal do avanço do plano redentor.
Elucidação
Observando a estrutura textual, é notável a união de dois horizontes que o autor têm em mente ao redigir o texto: em primeiro lugar; uma estrutura genealógica introdutória que demarca dos descendentes de Jacó, e em segundo; a gerência providente de Deus em, por meio dos desacertos e vícios dos personagens, realizar seus intentos e prosseguir seus planos - tema este que fora já introduzido pela narrativa anterior (Gn 29.1-30).
O forte conflito entre Lia e Raquel é instrumentalizado pelo Criador a fim de que o palco para todo o desenrolar da história da redenção esteja montado. Evidentemente, nada pode fugir da providência divina, mas o autor não está contemplando a Deus como personagem passivo, que apenas organiza o cenário, aproveitando as ocasiões que se lhe apresentam, moldando a história a partir de ocorrências avulsas ou independentes, muito pelo contrário, Moisés, diferentemente do que fez na narrativa de Gênesis 29.1-30, quando apresentou a movimentação da divina providência de maneira elíptica, agora abre a seção presente clarificando a atividade direta de Deus na trama: "Vendo Deus que Lia era desprezada, fê-la fecunda, ao passo que Raquel era estéril" (v.31).
O redator está apresentando ao seu público o complexo conceito de como Deus movimenta a história, algo que, de certa forma, já tem sido trabalhado desde o início do livro, porém agora é trazido à evidência sem qualquer tipo de reserva, e a motivação para tal mudança de comportamento do autor é o desejo de enfatizar ainda mais para o povo de Israel o seguinte conceito: o Deus que criou a história não atua apenas por de trás do véu da realidade, usando agentes ou meios indiretos, mas tem total liberdade para, ao seu bel-prazer, agir e intervir no curso histórico do mundo sem a instrumentalização de terceiros.
As entradas e saídas divinas, isto é, as ações diretas e indiretas do Criador no mundo e na história, servem como introdução do que será feito para que a salvação seja executada: de maneira direta e pessoal, o próprio Deus Triuno - por meio da Segunda Pessoa da Trindade - adentrará a realidade cosmológica e material que criou, a fim de restaurá-la.
Com isso em mente, Moisés está chamando a atenção de seus leitores para a grandeza daquilo que está sendo realizado na história de Jacó, do povo de Israel e de toda a igreja: a constatação de que Deus viu a Lia, serve como alicerce para a fé do povo: a salvação é uma realidade provida pelo próprio SENHOR, não um conceito abstrato ou virtual que pode ser reinterpretado. A redenção é um fato, e a defesa desse argumento é exposta a partir da narrativa do nascimento dos filhos de Jacó.
A contenda entre as esposas de Jacó gira em torno de sua capacidade de atrair a atenção de seu marido mediante a concepção de filhos. Após a introdução do versículo 31, conforme vimos, dos versículos 32 a 35, a ação divina de tornar Lia fecunda, ao passo que Raquel é deixada estéril (como resultado também da vontade do Criador (cf. Gn 30.2)) é enfatizada. Num primeiro momento, quatro filhos são nascidos daquela que era "preterida" (Gn 29.33), e a cada nascimento, há uma preocupação em destacar o favor divino naquela realização: os nomes dos filhos são usados como epítetos da vitória alcançada por uma esposa em detrimento da outra (vs. 32; 33; 35), fato que acirra ainda mais a disputa.
A partir de Gn 30.1, o autor torna-se à Raquel, a fim de descrever sua reação frente ao sucesso de Lia, e seu crescente temor de que seu marido deixe de vê-la como preferida, fato que o redator faz questão de salientar com um comentário: "Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve ciúmes de sua irmã...". Assim, Raquel protagoniza seu turno no "combate de ego" com sua "oponente", entretanto, diferentemente de Lia, a quem é atribuído o favor divino, não é dito (pelo menos inicialmente) que Raquel foi agraciada como a fertilidade ou a cura de sua esterilidade, e frente a essa dificuldade, o meio que escolhe para suscitar filhos a Jacó, é entregar sua serva Bila, a seu marido. A estrutura frasal que é usada por Raquel, ao justificar sua ação, assemelha-se aquela usada por Sara ao entregar Agar a Abraão, com o mesmo fim, conforme fica claro ao compararmos Gênesis 16.2 a 30.3:
Gn 16.2: "Toma, pois, a minha serva, e assim me edifique através dela (hb. "אוּלַ֥י אִבָּנֶ֖ה מִמֵּ֑נָּה").
Gn 30.1: "Eis aqui Bila, minha serva, coabita com ela, para que dê a luz, e eu traga filhos ao meu colo, por meio dela" (hb. "וְתֵלֵד֙ עַל־בִּרְכַּ֔י וְאִבָּנֶ֥ה גַם־אָנֹכִ֖י מִמֶּֽנָּה" = "traga filhos ao meu joelho, através dela").
Contudo, embora naquele primeiro texto, o autor tenha destacado que tal método de concepção não estava vinculado ao desenrolar dos planos redentivos com base na aliança feita por Deus com Abraão, através de quem faria emergir uma descendência, tornando então a união entre Agar e o patriarca (e consequentemente o fruto dessa relação (i.e. Ismael)) ilegítimos em relação à benção redentiva, no texto de Gênesis 30.1-8, essa consideração não aparece. Ou seja, enquanto que no caso de Abraão e Agar, sua descendência com esta não correspondia à prole eleita, o SENHOR, usando a rixa entre as esposas de Jacó, está cumprindo a palavra profética à Abraão: os filhos de Jacó, oriundos de sua união com suas mulheres (e suas servas) são aquela semente santa que Abraão vislumbrou pela fé.
No verso 9, é dito que Lia, ao ter cessado de dar a luz (cf. Gn 29.35), usa a mesma estratégia de sua irmã, e oferece sua serva Zilpa a Jacó; o que resulta também no nascimento de filhos. Em seguida, a retomada da temática do conflito entre Lia e Raquel se dá no momento em que Rúben colhe algumas mandrágoras, e Raquel pede que ele lhas dê, o que enseja uma negociação entre as duas mulheres, que acabam acertando a "venda" das ervas pelo preço de que Lia fique por uma noite com Jacó.
Dois aspectos são abordados neste ponto, reforçando o caráter providencial de Deus no curso da narrativa: 1) a crença de Raquel de que através das ervas e suas propriedades poderia ter mais filhos, e 2) a barganha de Lia em aceitar passar uma noite com Jacó mediante uma estranha negociação.
Com relação ao primeiro aspecto, é importante notar que o autor demonstra a crença ainda paganizada de Raquel, ao lançar mão de tal meio para realizar seus propósitos. O desejo de Raquel pelas mandrágoras que Rubén colheu, provavelmente possui raízes no costume pagão da época de crer que tal planta possuía propriedades especiais, tanto afrodisíacas quanto fertilizantes (WALTON,2018, p.76), e assim, Raquel cria que, através de seu uso, poderia suscitar mais filhos a Jacó. Esse vício da personagem é um ponto que concorre como reforço da tese do autor que vem sendo abordada até este ponto: mesmo as falhas dos indivíduos, correspondem a execução dos planos redentivos.
Por outro lado, o segundo aspecto usado por Moisés para declarar o curso coeso da história debaixo da providência divina, é a negociação decorrente desse interesse de Raquel pelas ervas de Rúben. Uma situação aparentemente esdrúxula e reprovável, encena a retomada da publicação da atuação divina no enredo: "Ouviu Deus a Lia; ela concebeu e deu à luz o quinto filho" (Gn 30.17), e da mesma forma, o Criador também favorece Raquel: " Lembrou-se Deus de Raquel, ouviu-a e a fez fecunda" (Gn 30.22).
O princípio claro exposto pelo autor desde o início da narrativa, engloba os aspectos anteriormente clarificados de que não somente os percalços (tal como visto anteriormente (cf. Gn 29.1-30)), mas também as próprias falhas e vícios dos personagens, contribuem para que a fidelidade de Deus seja vista na história de seu povo, e o cumprimento da Aliança seja efetivado.
Tal referência não deve ser entendida como a concessão de algum tipo de "passe-livre" para que Israel pecasse contra Deus, visto que até mesmo seus vícios estariam debaixo do controle divino. Embora Raquel e Lia travem uma verdadeira batalha egoísta, a fim de terem o amor de Jacó, ambas trilham um caminho de altos e baixos, até que sua fé no Deus de Jacó seja maturada, ao ponto de confiar nEle para obter a benção que tanto desejam.
Novamente, o ponto em questão é destacar a soberania do Criador em estruturar a história redentiva de maneira tal, que até mesmo as falhas dos homens não lhe sejam obstáculos, e sim, desdobramentos dos propósitos salvadores do SENHOR em cumprir sua palavra. Enquanto muitos poderiam ver em todo este episódio, desordem, pecado e caos, Moisés ergue os olhos do povo a fim de que este enxergue a mão sábia do Criador tornando realidade aquilo que falara ao seu servo anteriormente: "de ti farei uma grande nação" (cf. Gn 12.2).
Transição
O texto de Gênesis 29.31-30.24 expõe a grandeza da divina providência no reforço de suas promessas, mas também fornece o exemplo claro de que a fidelidade do Criador é uma base sólida o suficiente para que o povo de Deus confie no curso da história redentiva, sem duvidar de que o desfecho será tão glorioso quanto o que foi decretado pelo próprio Soberano para ser.
Os pecados e falhas dos filhos de Deus, são meios através dos quais o Criador molda a fé de seu povo, a fim de que descansem tranquilos debaixo de sua mão providente. A confiança no controle divino não pode ser vista por nós, eleitos de Deus, como uma simples ciência de que existe um Ser, Todo-poderoso, que governa todas as coisas. Tal pensamento é impessoal e se distancia completamente daquilo que nos é revelado nas Escrituras.
A gerência providente do Criador abraça cada crente fazendo-o enxergar mais adiante: o Deus que nos trouxe até aqui, não perderá de vista seus próprio objetivos, levando em consideração em primeiro lugar, sua glória, e em seguida, nosso bem-estar, e usará inclusive nossos pecados, como lembretes de que somos seu povo, e portanto, que é nEle que devemos esperar a obtenção da consumação da promessa redentora.
Assim, Moisés redige o presente texto a fim de demonstrar como graça e misericórdia divinas, usando pobres pecadores, revelam também o poder de Deus em fazer o que lhe apraz na história do mundo, guiando seu povo à salvação.
Em vista disso, alguns princípios nos são expostos como aplicações tencionadas pelo autor divino para nós hoje. Quais sejam:
Aplicações
1. A graça e a misericórdia divina estão cima e além de nossos pecados, e são elas - após o objetivo divino de glorificar seu nome - que norteiam a divina providência.
Novamente, diante de um cenário tão "desordenado", seria impossível supor que algo tão esplendoroso quanto o cumprimento das promessas de Deus a Abraão, estivessem ocorrendo.
A passividade de Jacó, a vaidade de Lia, o ciúmes de Raquel, parecem ser manchas negras que ameaçam destruir a história das origens do povo de Israel, e consequentemente, de toda a igreja de Deus. Porém, enquanto poderíamos ver fracasso, o Criador nos mostra glória: a divina providência nos presenteia com um sinal claro de sua graça e misericórdia, fazendo emergir do cerne de tamanha balbúrdia, os representantes do povo de Deus: os filhos de Jacó serão os patriarcas das doze tribos de Israel.
Comentando a dinâmica de pecado e graça; vícios e misericórdia; falhas e providência, Bruce Waltke observa que:
Deus incorpora as pessoas mais falíveis e fracassadas em seus graciosos planos. "Duas irmãs competitivas, um esposo encaixado entre elas e um sogro explorador não são os melhores dados para narrativas de fé" (Brueggeman). As doze tribos de Israel começam em opressão, em sofrimento social e rivalidade. A despeito [...] da rivalidade entre Raquel e Lia por supremacia no lar e na sociedade, Deus abençoa a família com doze filhos. Sua graça é maior que nossos pecados, e seus propósitos não serão frustrados por estes.
[...] O Deus soberano edifica misericordiosamente a Israel, defendendo os preteridos e os necessitados (29.31; 30.22). Lia quer um esposo só par si (29.34), porém encontra em Deus misericórdia para gerar seis das doze tribos de Israel, inclusive as linhagens sacerdotal e messiânica. Raquel necessita da estima social e de gerar filhos (30.23), e Deus eventualmente se "lembra" dela. De uma forma espantosa, ainda que o sórdido ciúme e a superstição manchem sua fé, a misericórdia divina lhes concede as doze tribos de Israel. Uma vez mais, são a graça e a misericórdia divinas, não o mérito humano, que estabelecem o reino de Deus (WALTKE, 2010, p. 513, 514).
Se somos povo de Deus, a dinâmica é a mesma: apesar de nossos tantos pecados, os planos divinos permanecem intactos, aliás, nossos pecados também estão dentro do ação soberana de Deus, usando-os para que aprendamos a esperar dele, o suprimento de nossas vidas e o bom andamento de nossa história, fazendo-a convergir para execução da obra da salvação.
Experimentando momentos de fraqueza e dificuldades, devemos ecoar o sentimento do salmista:
Salmo 123.2 RA
Como os olhos dos servos estão fitos nas mãos dos seus senhores, e os olhos da serva, na mão de sua senhora, assim os nossos olhos estão fitos no Senhor, nosso Deus, até que se compadeça de nós.
Lembrando que Cristo é a maior demonstração da graça e da misericórdia divinas, ao nos ter resgatado da miséria de nossos pecados, nos tornando parte do Israel de Deus.
2. Na lida contra o pecado, devemos sempre nos reportar ao Redentor, buscando nele o consolo e conforte das lutas e dificuldades que enfrentamos.
Raquel e Lia aprenderam, à duras penas, que diante do sofrimento ou da angústia que sentimos, somente Deus pode ser uma consolo realmente eficaz.
Lia, desprezada por seu marido, buscando a atenção deste, teve seu coração agraciado com a revelação de que somente o Criador nos acolhe e nos ouve em nossa aflição (cf. o nome "Rúben" (v.32)).
Raquel por outro lado, mesmo após usar meios escusos para obter filhos, foi alvo da graça divina, que lhe mostrou a benevolência do Soberano em tirá-la da situação vexatória que enfrentava (cf. o nome "José" (vs.23-24).
Podemos ancorar nosso coração nas coisas desse mundo, como Raquel o pôs nas mandrágoras, ou Lia na atenção de Jacó, mas somente Deus pode preencher nosso coração ao ponto de nos fazer olhar para sua salvação com gratidão, sabendo que agora, mesmo depois de tantos pecados cometidos, somos parte do povo de Deus; da família da Aliança,.
Conclusão
Resumindo toda essa situação inebriante de confusão e triunfo, Carlos Osvaldo comenta:
"A divina promessa de fertilidade é cumprida a Jacó, ainda que em um contexto de ciúme e conflito, em que a fé e a engenhosidade humana colidem frequentemente" (29.31–30.24) (OSVALDO, 2014, p.48).
Nossos pecados e falhas não podem obscurecer a grande luz da salvação que é Cristo, o herdeiro de Abraão, Isaque e Jacó, que garante nosso pertencimento ao Israel de Deus.