Gênesis 26.1-16

Série expositiva no Livro de Gênesis  •  Sermon  •  Submitted
0 ratings
· 24 views

O autor estabelece o quadro comparativo entre o percurso histórico de Abraão e Isaque, conectando o próprio povo de Deus ao longo da história a esse fluxo redentivo do qual são participantes por descendência espiritual, a fim de que seus leitores percebam a incondicionalidade da bênção eletiva, e por meio dela, compreendam a profundidade do relacionamento que tem com o SENHOR, e por meio disso os chama à obediência e ao compromisso com Deus, sendo beneficiados, por exemplo, com a a proteção divina diante dos povos adversários.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 26.1-16
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Partindo para mais uma capítulo da saga isaica, agora o escritor elabora a narrativa de Gênesis 26 abordando aspectos comuns entre o percurso histórico-redentivo empreendido por Deus através de Isaque, relacionando-o com as experiências vividas por Abraão. Essa semelhança familiariza e reforça para o leitor a ideia de que há uma continuidade nas intenções divinas; uma constância que permanece favorecendo os eleitos de Deus e especialmente, o povo de Israel, descendente desses patriarcas.
A trilha deixada por Abraão é percorrida por Isaque, seu filho, aquele em quem está representado o povo de Deus. As marcas da fé do primeiro patriarca são indeléveis, demarcando inclusive os passos do segundo, não por causa da firmeza ou vigor da fé de Isaque, pois como será visto, ele falha também de maneira semelhante à seu pai, mas devido a permanência do favor divino sobre si, como demonstrativo da fidelidade e seriedade da promessa do SENHOR feita a Abraão. Esses paralelos são traçados a partir da repetição referencial de acontecimentos ocorridos primeiramente com Abraão, e replicados em e por Isaque. Assim, o capítulo 26 é uma síntese da progressão histórica do que Deus faz através de Abraão, e repetirá em Isaque, garantindo fluxo de execução dos planos salvadores do Criador.
Em face disso, duas seções se desdobram para reforçar essa tese: os versículos de 1 a 16 reprisam eventos da saga abraâmica (i.e. Gn 12.10-20; 20) em que a fé de Isaque é fortalecida pelo vislumbre do favor divino que lhe garante proteção diante de inimigos - tal como ocorrera com Abraão -, e a segunda seção, versículos de 17 a 35, enfatiza a graça do SENHOR em atestar a possessão da terra (Gn 21.22-34), tal como anteriormente falara o Criador, repetindo e confirmando o teor de seu compromisso pactual agora a Isaque.
Hoje, nos concentraremos na primeira seção, cuja a tese central é a proteção divina em favor a semente eleita como fruto da bênção incondicional do SENHOR.
Elucidação
O próprio autor dá indícios da intencional conexão entre as narrativas, ao iniciar o texto com uma referência a acontecimentos comuns entre as histórias de Abraão (cf. Gn 12.10) e Isaque (26.1): "sobrevindo fome à terra, além da primeira havida nos dias de Abraão"(v.1). O redator não está afirmando que os eventos são exatamente os mesmos, pois o uso da expressão "מִלְּבַד֙" (hb. lit. "além da") possui uma conotação mais disjuntiva do que conjuntiva, porém, estabelece ainda assim uma relação, apontando que a fome da época de Isaque é outra, não a mesma do período em que Abraão viveu, mas o contexto de escassez aproxima os dois personagens.
Seguindo disso, o modus operandi em que teofanias ocorrem para ambos os patriarcas também é semelhante. Uma peregrinação é empreendida mediante a ordem divina que guia o indivíduo para o lugar designado por Deus. Embora no verso primeiro o autor já tenha adiantado o destino da peregrinação de Isaque, é no verso 2 que a razão dessa migração aparece: mais uma vez Deus apresenta-se como o socorro de um eleito, e lhe garante a benção da proteção e provisão que lhe farão chegar ao centro da vontade do Todo-poderoso.
Esse circuito migratório e sua repetição são intencionalmente usados pelo autor na construção exortativa que vem desenvolvendo desde o início da saga patriarcal de Abraão, especificamente. A marcha dos eleitos de acordo com a ordem divina é exatamente o contexto que está sendo vivido pelo público ao qual Moisés se dirige. A base do argumento do autor dramatizada pela narrativa de ambos os patriarcas (Abraão e Isaque) serve-lhe como constante exemplo de como funciona o usufruto das bênção divinas. Embora pareça condicional, Moisés está na verdade demonstrando um padrão: sob a palavra do SENHOR e com fé em suas promessas, os patriarcas encontram o consolo de que precisam para suportar as dificuldades, experimentando os favores do Criador em os preservar de toda e qualquer ameaça, fazendo-os inclusive prosperar no meio de situações adversas; isso tanto pelo amor de Deus pelos seus eleitos, quanto - e principalmente - pela fluência dos planos divinos em exaltar seu nome na história da redenção.
O povo de Israel recebe as benesses da graça eletiva, não porque é fiel aos mandamentos do Soberano, mas porque a bênção deste repousa sobre eles de maneira abundante e permanente. Essa bênção é demonstrada na história de Isaque a partir do verso 3-5, em termos semelhantes aos proferidos à Abraão:
Gênesis 26.3–5 RA
habita nela, e serei contigo e te abençoarei; porque a ti e a tua descendência darei todas estas terras e confirmarei o juramento que fiz a Abraão, teu pai. Multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e lhe darei todas estas terras. Na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra; porque Abraão obedeceu à minha palavra e guardou os meus mandados, os meus preceitos, os meus estatutos e as minhas leis.
Entretanto, essa exortação não sugere uma desobrigação ou flexibilização do imperativo divino quanto a obediência. Em Gn 17.1, a ordem de Deus à Abraão (cf. "anda na minha presença"), deve gerar no coração do patriarca santidade e retidão (cf. "e sê perfeito"). As implicações diretas de tal exemplo são transportadas para Isaque com o mesmo teor, através da rememoração dessas mesmas palavras: "Multiplicarei tua descendência, [...] lhe darei todas estas terras, [...] porque Abraão obedeceu à minha palavra"(v.4). Novamente, imperativo e indicativo fundem-se para formar o elo que conecta Deus ao seu povo, um elo não meritório, mas gracioso.
Contudo, Moisés abarca não somente as próprias conexões feitas pelo SENHOR em sua revelação, destacando os aspectos positivos das narrativas e de como elas se cruzam, mas também através dos deslizes e fraquezas na fé. Assim como Abraão, o autor demonstra que o próprio Isaque está experimentando um processo de amadurecimento na fé, que assim como seu pai, hora se mostra forte, hora se mostra débil, como é narrado a partir do versículo 6.
Embora tenha recebido o fiat divino que lhe garantia a bênção do SENHOR, Isaque incorre na mesma fraqueza de buscar preservação ou proteção através de vias carnais e humanas:
Gênesis 26.7 RA
Perguntando-lhe os homens daquele lugar a respeito de sua mulher, disse: É minha irmã ; pois temia dizer: É minha mulher; para que, dizia ele consigo, os homens do lugar não me matem por amor de Rebeca, porque era formosa de aparência.
O autor narra o episódio a fim de que as referências conectivas entre as narrativas fossem estabelecidas tanto a partir dos aspectos positivos quanto negativos, como já dito, ressaltando aquela tese da incondicionalidade dos planos de Deus. A benção do SENHOR não favorecerá Isaque fechando os olhos para seu pecado; ele expôs sua esposa ao perigo de ser tomada como mulher de outro homem, interferindo nos planos de continuidade da linhagem santa; mas também não se apartará do patriarca: Abraão fraquejou da mesma forma pelo menos duas vezes, todavia, sua fraqueza na fé foi seguida por uma demonstração de graça da parte do Criador, lhe fazendo usufruir de prosperidade em detrimento de adversários (Gn 12.11-12, 16; 20.2,14-16). O mesmo está ocorrendo com Isaque, através de quem Moisés está reforçando sua exortação: o povo não é abençoado porque obedece, obedece (e deve obedecer) porque é abençoado, uma lógica que faz cair por terra qualquer tipo de relação bilateral baseada em barganha, ou num favor divino parcial, tal como concebiam os povos pagãos na terra de Canaã, para onde Israel está indo.
O registro da bênção de Deus sobre Isaque recebe ênfase no texto, demarcando tal princípio:
Gênesis 26.12–14 RA
Semeou Isaque naquela terra e, no mesmo ano, recolheu cento por um, porque o Senhor o abençoava. Enriqueceu-se o homem, prosperou, ficou riquíssimo; possuía ovelhas e bois e grande número de servos, de maneira que os filisteus lhe tinham inveja.
Outro fator que não pode ser perdido de vista é a introdução que Moisés faz de povos com os quais Israel já teve ou terá contato ao entrar na terra prometida (cf. v. 2 "Abimeleque, rei dos filisteus"), revelando que, no passado, os próprios patriarcas experimentaram a rivalidade com estas mesmas nações, e o motivo para tal antítese gira em torno da bênção do SENHOR sobre seus escolhidos.
Nesta primeira seção a proximidade contextual entre a narrativa de Isaque e Israel são intensificadas por uma contenda gerada a partir do crescimento do favorecido por Deus no meio de povo pagão. A seção termina com a apresentação da prosperidade de Isaque e a inveja de Abimeleque:
Gênesis 26.12–16 RA
Semeou Isaque naquela terra e, no mesmo ano, recolheu cento por um, porque o Senhor o abençoava. Enriqueceu-se o homem, prosperou, ficou riquíssimo; possuía ovelhas e bois e grande número de servos, de maneira que os filisteus lhe tinham inveja. E, por isso, lhe entulharam todos os poços que os servos de seu pai haviam cavado, nos dias de Abraão, enchendo-os de terra. Disse Abimeleque a Isaque: Aparta-te de nós, porque já és muito mais poderoso do que nós.
Esse quadro de crescimento/prosperidade seguido de inveja e sentimento de ameaça por parte de um povo vizinho ou estranho, repete-se com Israel no Egito, fato que, segundo já demonstrado, está sendo reprisado por Moisés, conforme a narrativa de Êxodo 1.8-10:
Êxodo 1.8–10 RA
Entrementes, se levantou novo rei sobre o Egito, que não conhecera a José. Ele disse ao seu povo: Eis que o povo dos filhos de Israel é mais numeroso e mais forte do que nós. Eia, usemos de astúcia para com ele, para que não se multiplique, e seja o caso que, vindo guerra, ele se ajunte com os nossos inimigos, peleje contra nós e saia da terra.
A narrativa de Gênesis não perde de vista que a força motriz da história salvífica é a rivalidade entre linhagens distintas, e retoma esse esquema ao sublinhar a tensão iniciada entre Isaque e Abimeleque. O povo de Israel está sendo exortado a ver como essa temática jamais poderá ser esquecida, o que lhe servirá de aviso: crendo que a benção de Deus os favorece, isso certamente acarretará o despertar da inveja de inimigos, assim como acontecera no passado, quando estiveram na terra do Egito, e seguirá acontecendo, até que a redenção seja consumada pelo Descendente Prometido, e o pecado seja vencido.
Entretanto, chegando assim ao ponto focal desta primeira seção, Moisés também descreve como a bênção incondicional de Deus faz distinção entre seus eleitos e os que não são, protegendo aqueles dos males e adversidades, isso de duas formas: 1) Abimeleque, diante da mentira de Isaque, declara proteção em favor do casal: "E deu esta ordem a todo o povo: Qualquer que tocar a este homem ou à sua mulher certamente morrerá" (v.11), e 2) o SENHOR faz Isaque prosperar (como já demonstrado), tornando-o tão poderoso quanto os filisteus, ao ponto de estes temerem aquele sobre quem está a bênção do Criador: "Disse Abimeleque a Isaque: Aparta-te de nós, porque já és muito mais poderoso do que nós" (v.16).
Transição
O texto de Gênesis 26.1-16 explica a dinâmica da bênção do SENHOR sobre seu povo. Não há razão na Escritura que nos faça crer que logramos da parte do Criador algum favor por causa de nossa obediência. O único fator apontado pela Escritura para o repouso das incontáveis e benditas dádivas do Todo-poderoso sobre nossas vidas é sua graça salvadora, que nos atrai à sua presença amorosa, nos fazendo viver de acordo com sua vontade, nos usando como reflexo de seu caráter: um Deus justo e puro, não pode ter como arautos de sua glória, seres manchados e corrompidos pelo pecado, que andam desordenadamente, e sim, servos leais às suas leis, estatutos e mandamentos.
A ponte histórico-redentiva entre Abraão e Isaque declara ao povo de Israel essa dinâmica: Isaque herda o favor divino, não porque foi esperado dele algum tipo de iniciativa, mas porque, em fidelidade ao seu pacto firmado com Abraão, o Criador garantiu que sua glória seria publicada na restauração dos cosmos, por intermédio de uma semente santa, oriunda dos filhos espirituais da linhagem patriarcal que iniciou-se em Isaque.
Assim, o filho de Abraão recebe a bênção do SENHOR, sendo protegido de tribulações (i.e. fome), e inimigos (e.g. os filisteus), assim como todo aquele que foi chamado em Cristo, o Descendente Prometido; o Filho da Promessa, também o recebe. Embora vivamos em um mundo abalado pelo pecado, os pilares da graça mantêm-se intactos ao longo da história, pois a bênção do SENHOR perpassa espiritualmente de geração para geração, tendo a Jesus, o Filho de Deus, como o cumprimento do pacto que nos garante essa bênção.
Entretanto, o texto nos convoca a observarmos ainda algumas outras aplicações.
Aplicações
1. A obra redentiva de Deus na história, garante a continuidade da bênção sobre o povo de Deus, e o demonstrativo disso é a proteção divina.
Assim como o texto demonstra a continuidade da bênção de Deus passando de Abraão para Isaque, temos a certeza que usufruímos do mesmo benefício. E o que garante essa perpetuidade? a fidelidade do SENHOR demonstrada em Cristo. Aquele que prometeu a Abraão um descendente que o faria herdar a salvação, cumpriu tal promessa ao enviar e sacrificar seu próprio Filho, Jesus Cristo, cuja morte garantiu a quitação da nossa vida, e a ressurreição, assegurou-nos o Reino dos céus.
O fato é que, através do Senhor Jesus, obtemos a bênção concedida aos patriarcas, e como dito, apesar de estarmos vivendo em mundo repleto de ameaças, é a graça divina ministrada sobre nós através de Cristo, que confirma e atesta nossa proteção.
As tribulações e perseguições do tempo presente, não podem tirar de nós a expectativa por contemplarmos aquilo que em nós há de ser manifesto no último dia. Assim como a fome e reis do passado (e.g. Abimeleque (cf. Gn 26.1) não puderam impedir que Isaque fosse agraciado pelo SENHOR, nós somos todos os dias lembrados de que essa graça repousa sobre nós, através das abundantes bênçãos que recebemos das mãos do Senhor, e por elas devemos ser gratos, pois, não desfrutamos delas por algo que o Criador tenha visto em nós, mas unicamente devido sua graça poderosa. O que nos leva ao nosso segundo ponto.
2. O princípio da relação de Deus com seu povo não é meritório, mas gracioso.
Devemos ter o cuidado de não cairmos num paganismo sútil, pensando que a obediência precede a bênção.
João Calvino, comentando o verso 5, em que é demonstrada a dinâmica do relacionamento de Deus com Isaque, enfatiza:
Moisés não pretende dizer que a obediência de Abraão foi a razão pela qual a promessa de Deus lhe foi confirmada e ratificada; mas do que fora dito anteriormente (cf. Gn 22.18), onde temos uma expressão semelhante, aprendemos que, o que Deus graciosamente outorga aos fiéis, apesar de não merecerem, lhes é concedido, para que ele, sabendo que sua intenção há de ser provada pelo Senhor, se apeguem e se devotem mais fervorosa e inteiramente ao seu serviço; assim, Deus agora enaltece a obediência de Abraão, a fim de que Isaque fosse estimulado a imitar seu exemplo (CALVINO, 2019, p. 61).
Se Deus, neste caso, estivesse esperando a postura de Isaque, para então abençoá-lo, teria motivos de sobra para puni-lo, pois Isaque, ao invés de confiar nas palavras do próprio Deus, trama meios de ele mesmo preservar-se diante de possíveis ameaças.
O que ocorre, porém, é que o relato é usado pelo autor para demonstrar que, embora seja indigno do favor divino, Isaque o recebe, porque Deus haveria de ser gracioso com ele, assim como foi com Abraão, seu pai.
Da mesma forma, precisamos entender a dinâmica da operação graciosa de Deus em nosso favor. Não somos abençoados pelo SENHOR depois de o ter obedecido, pois, apesar de contarmos com a presença do Espírito Santo que controla nossas vontades, a fim de que vivamos à imagem de Cristo, devido a natureza pecaminosa ainda se fazer presente em nossos corações, há sempre uma tensão entre o vício e a virtude, que sempre mancha nossas melhores obras, e assim, não fosse pela graça do Criador, jamais poderíamos obter de sua parte qualquer coisa boa, senão justiça e juízo.
Como já mencionado, tratar Deus como alguém que espera algo de nós para nos favorecer, é um pensamento mais - para não dizer completamente - pagão do que cristão. A graça preenche completamente nossas vidas, de modo que, vivemos à luz desse maravilhoso padrão: Deus nos abençoa, para que o obedeçamos, e o obedecendo, somos por ele novamente abençoados.
É digno de reprise, o princípio de que a graça é manifesta sobre os eleitos sempre os distinguindo dos pagãos que não conhecem ao SENHOR, distinção essa que também perpassa por uma vida em santidade e piedade. Assim, a bênção divina não é o resultado da obediência, e sim seu reflexo; a perene marca de um coração redimido e santificado para viver para a glória de Deus.
Conclusão
"Eu serei contigo e te abençoarei" (Gn 26.3). As palavras de Deus a Isaque, ecoam através do tempos, sendo aplicadas à vida de cada servo do SENHOR, pois a bênção que o Criador declarou sobre Abraão, abarca pela fé todo aquele que foi chamado para ser descendência daquele que nos garante a proteção e provisão neste mundo: Cristo Jesus, o herdeiro prometido.