Gênesis 22.1-19

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O autor exorta o povo de Deus à fé no Messias enviado da parte do SENHOR, como substituto sacrificial que proporcionará a redenção prometida.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 22.1-19
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Observando a narrativa da saga abraâmica levando em consideração sua jornada de amadurecimento na fé, é possível notar que o próprio autor enleva sua narrativa à um padrão de evolução onde a cada ponto crítico, a fé do patriarca é provada para que desenvolva a compreensão da obra salvadora que garantirá a redenção sua e da descendência que o SENHOR fará surgir a partir dele, tendo já começado a executar esse plano como demonstrado também por vias do nascimento de Isaque (Gn 21).
Ambos os capítulos (21 e 22) estão conectados ao ponto central de compreensão do tema dos planos de salvação que o SENHOR vem executando desde Gn 3.15, e sublinham o desenrolar histórico que lança a expectativa para o surgimento do ente responsável por operar a vontade do SENHOR em triunfar sobre o mal que invadiu o mundo, publicando sua glória ao restaurar a criação.
Gênesis 22.1-19 registra o clímax da trama patriarcal ao narrar o último teste que proporcionará a Abraão a compreensão de que precisa para que sua fé atinja o ponto pretendido por Deus, a fim de que compreenda que todos os episódios aos quais o patriarca foi submetido, representam a trilha redentiva que todo o povo de Deus percorrerá rumo a salvação. A partir dessas considerações, é possível compreender que a tese central de Gênesis 22.1-19 é o amadurecimento da fé salvadora: a revelação messiânica da redenção.
Elucidação
A narrativa inicia-se com a declaração de que Abraão deverá ser provado por Deus, e o teor dessa prova, também é logo publicado: o patriarca terá de oferecer seu próprio filho, Isaque, como holocausto ao SENHOR. É interessante aqui estabelecermos o teor dessa prova.
Abraão não está recebendo uma ordem divina que testaria se ama ele mais a Deus do que a Isaque, o filho prometido. Não se trata de uma rivalidade ou ciúmes da parte do SENHOR em saber se de fato continua sendo o centro da vida do patriarca. Tal compreensão rouba a intensidade do que está sendo proposto pelo narrador: o ponto focal de toda a saga (sobretudo neste episódio), é levar Abraão à compreensão de como a promessa feita por Deus será executada e garantida. O patriarca precisa entender o modo através do qual a redenção acontecerá, para que um padrão conceitual seja estabelecido, a fim de que sua fé e a de todos aqueles que virão a partir de sua linhagem, manifestem.
O sacrifício descrito em Gênesis 22.2 apresenta-se como um holocausto (hb. "עֹלָה" = oferta queimada), expressão que aparece na instituição dos sacrifícios (referencialmente) expiatórios em Levítico 1. A conotação do uso dessa expressão por parte do autor era novamente fazer uma aproximação entre o ouvinte/leitor de seu texto e a situação a qual está sendo vivida por Abraão.
O teste de fé ao qual o patriarca terá de submeter-se, como já demonstrado, girará em torno de como ele compreende os planos de Deus para salvação de seu povo eleito, em vias do sacrifício de seu único filho. O ponto nevrálgico do texto é a tensão criada pelo próprio Deus na petição do menino como oferta e a reação de Abraão.
Ao longo de toda a narrativa, o autor demonstra repetidamente um estado de prontidão por parte de Abraão, ao ser ele questionado por alguns personagens com relação a demanda que terá de atender. Nos versos 1, 7 e 11, Abraão é interpelado por Deus e Isaque, ao que responde sempre da mesma maneira: "eis-me aqui". O uso dessa repetição é elaborado pelo autor como sendo o marco através do qual é exibido a maturação da fé de Abraão. Desde a publicação da ordem divina (v. 2), passando por sua partida até os montes de Moriá, onde transmite a base de sua fé na fala aos servos no sopé do monte; de que ambos (ele e Isaque ) retornariam (v.5), até o momento em que está preste a imolar seu filho quando é interrompido pelo anjo, Abraão não hesita em fazer a vontade de Deus.
O argumento que soluciona o questionamento implícito quanto a que postura que Abraão terá em relação ao que lhe fora ordenado está sendo construído silenciosamente por meio dessas respostas e demonstrações de prontidão. Como visto à luz do texto anterior, Abraão e Sara compreenderam que a promessa do SENHOR vai mais além do que providenciar que ambos tenham um filho em sua velhice, mas que o nascimento desse filho está diretamente ligado a obra salvadora que está por se realizar através da linhagem da fé que percorrerá a história até que chegue ao ápice, com o surgimento do Messias: o executor dos planos divinos.
Em face disso, ao pedir Isaque em sacrifício, Deus estaria aparentemente mudando o rumo da história não somente do idoso casal que acabara de ter um filho, mas de toda a história da redenção, pois sem Isaque, a linhagem não continuará e o Redentor jamais poderá vir a este mundo. A única conclusão possível, a qual chega Abraão, é que Deus há de providenciar um meio de substituir o objeto requerido para o sacrifício.
Assim, ao ser questionado por seu filho quanto a onde estava o cordeiro que haveria de ser imolado, Abraão não somente demonstra total confiança em Deus, como também exibe ter uma compreensão específica do plano redentivo: "Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto" (v.8).
De acordo com o que já fora exposto, o tipo de oferta requerida pelo SENHOR, conforme comunicado a Abraão, faz parte das ofertas sacrificais do sistema levítico instituído pelo próprio Criador por intermédio de Moisés. O ponto característico em tais sacrifícios é o teor substitutivo que elucida a "transferência"da ira divina do pecador/transgressor para o animal sacrificado, proporcionando assim o livramento da punição por parte do SENHOR. O aspecto salvífico do holocausto consistia na troca de lugar entre o culpado e o inocente, sofrendo este no lugar daquele, garantindo a satisfação da justiça de Deus, que não pode deixar impune a transgressão. Esse conceito, embora só tenha sido elaborado de maneira mais sofisticada somente durante a peregrinação de Israel no deserto, já estava presente no período patriarcal.
Por exemplo, na ocasião em que Deus firma um pacto de sangue com Abraão (Gn 15), o patriarca foi testemunha de que, embora fosse beneficiário da aliança, não poderia assumir o juramento da mesma maneira como Deus o faria, quando passou sozinho por entre os pedaços dos animais, tendo isso então um único significado: a redenção do patriarca e de sua linhagem só poderia ser executada pelo próprio Deus, sofrendo ele mesmo as punições estipuladas no pacto de obras estabelecido com Adão, o qual foi quebrado pelo pecado deste. Logo, o teor sacrificial substitutivo já havia sido apresentado a Abraão que agora recebe da parte do Criador a compreensão de que precisava para não hesitar em fazer o que lhe foi requerido. A fé do patriarca é fortalecida com a última centelha de noção que restava: ainda que seu filho fosse morto, Deus o traria de volta, pois o que está em questão não é somente seu sonho de ser pai, mas sua esperança na salvação divina.
Mediante a fé que agora dispunha, fé que compreende (por vislumbre) os desdobramentos do plano redentivo, Abraão encaminha-se para o sacrifício de seu filho. Tendo preparado todo o cenário, quando está prestes a imolá-lo, uma segunda ocorrência teofânica ocorre, impedindo Abraão de continuar, ao que isso representa para ele o recobrar de seu filho dos mortos, como será exposto mais adiante. Porém, ao impedir Abraão de proceder com o sacrifício de Isaque, Deus emite um veredicto que ratifica a compreensão da Abraão: "Bradou o Anjo do SENHOR: Abraão! Abraão! [...] Não estendas a mão sobre o rapaz e nada lhe faças, pois agora sei que temes a Deus" (v. 11).
O temor do SENHOR em Abraão é o clímax das demonstrações feitas pelo autor de que o patriarca havia chegado à maturação de sua fé. Abraão não é mais o homem que teme por sua vida como se ela dependesse dele mesmo para sua sobrevivência em terra alheia. Não é o mesmo indivíduo que expôs ao perigo sua própria esposa, colocando-se contrário aos planos redentivos de promover através deles (Abraão e Sara) o surgimento da linhagem santa. A fé do patriarca repousa tranquilamente debaixo da divina providência, crendo que até a própria morte poderia ser anulada, tendo em vista a vontade de Deus de cumprir em seus planos.
Como prova disso, seus olhos agora contemplarão a revelação messiânica que lhe proporcionará fé suficiente para que viva debaixo da expectativa da consumação das promessas divinas:
"Tendo Abraão erguido os olhos, viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos; tomou Abraão o carneiro e o ofereceu em holocausto, em lugar de seu filho" (v.13).
Numa segunda fala direcionada ao patriarca, o SENHOR amplia ainda ainda mais essa revelação:
Então, do céu bradou pela segunda vez o Anjo do SENHOR a Abraão e disse: Jurei, por mim mesmo, diz o SENHOR, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos, nela serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha voz (Gn 22.15–18).
O Criador confirma a bênção que predissera a Abraão por ocasião de seu chamamento em Gn 12.1-3, ao passo que também lhe entrega a última parte do ato profético que acabara de revelar ao patriarca: Abraão não negou ao SENHOR seu único filho, o qual porém recobrou mediante a fé. O Criador por outro lado, entregando um carneiro preso pelos chifres para o sacrifício, demonstra que não poupará Aquele que está sendo representado pelo carneiro (i.e. o Messias - Cristo), para cumprir o que prometera a Abraão.
No final da narrativa, o autor encerra os relatos fazendo com que seus ouvintes/leitores percebam que de fato Abraão agora usufrui de uma fé firme o suficiente para fazê-lo aguardar o momento de sua salvação: "Então, voltou Abraão ao seus servos, e, juntos, foram para Berseba, onde fixou residência" (v.19). Assim como dissera aos seus servos, aconteceu: Abraão e Isaque, juntos, retornam do monte, e assim termina sua peregrinação: ele fixa residência pois não precisa mais percorrer a terra de que tomará posse a fim de poder crer que de fato a terá, tudo de que precisa já lhe foi revelado, resta-lhe aguardar a redenção.
Gênesis 22.1-19 à luz do NT
Partindo para a compreensão neotestamentária do relato de Gênesis 22.1-19, observamos a perspectiva do escritor Aos Hebreus, que interpreta a passagem exatamente do ponto de vista da história da redenção como arcabouço da fé de Abraão. Em dois momentos de seu escrito o autor cita o episódio: Hb 6.13-20 e 11.17-19.
Em 6.13-20, o autor expõe a solenidade do juramento feito por Deus, quando afirma:
"Pois, quando Deus fez a promessa a Abraão, visto que não tinha ninguém superior por quem jurar, jurou por si mesmo, dizendo:
Certamente, te abençoarei e te multiplicarei.
E assim, depois de esperar com paciência, obteve Abraão a promessa. Pois os homens juram pelo que lhes é superior, e o juramento, servindo de garantia, para eles, é o fim de toda contenda. Por isso, Deus, quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, se interpôs com juramento, para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta; a qual temos por âncora da alma, segura e firme e que penetra além do véu, onde Jesus, como precursor, entrou por nós, tendo-se tornado sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.
A garantia da redenção de que dispôs Abraão no momento em que Deus lhe demonstra a revelação messiânica que proporcionará a consumação da promessa, segundo o autor Aos Hebreus, não estava sendo declarada apenas para o patriarca, mas, assim como sua história demonstra, todo aquele que é chamado "descendência de Abraão" usufrui do mesmo penhor, isto é, a palavra de juramento ao qual Deus deferiu tendo a si mesmo como fiador. O fim de tal juramento solene era de que toda a igreja do SENHOR desfrutasse da esperança de que, mediante a vinda de Cristo, nosso Sumo Sacerdote, ou, o Cordeiro (Jo 1.29), obteremos a vitória sobre o pecado, e até mesmo sobre a morte, conforme ele referenda no segundo momento em sua carta:
"Pela fé, Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas, a quem se tinha dito: Em Isaque será chamada a tua descendência; porque considerou que Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde também, figuradamente, o recobrou" (Hb 11.17–19).
A esperança de Abraão, que obteve pela fé, o fez confiar que a obra da redenção não seria interrompida, mesmo pela morte, e assim, obteve o resgate de seu filho. Cristo, o Filho de Deus, não foi poupado, como afirmado anteriormente, a fim de que nós, da morte, fôssemos recobrados e adentrássemos a terra prometida: a Canaã celestial. Aquilo que Abraão vislumbrou pela fé, nós temos recebido, e por outro lado, também pela fé contemplamos a consumação da obra salvadora. Mediante a própria concepção do autor Aos Hebreus, o que é a fé? "é a certeza das coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem" (Hb 11.1). Não estamos vendo nada, ainda. Não estamos contemplando o Novo Céu e Nova Terra que nos prometeu o SENHOR. Porém, como também o autor enfatiza em sua carta, tanto Abraão quanto tantos outros crentes do passado:
"Morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se, na verdade, se lembrassem daquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade (Hb 11.13–16).
O testemunho do Novo Testamento é de que igreja do SENHOR segue as mesas pisadas de Abraão, com um diferença, aquilo que Abraão viu de maneira figurada já aconteceu: Cristo já foi imolado em nosso lugar, e já nos proporcionou a redenção. O que estamos esperando é que Deus de novo brade dos céus, não para anunciar o sacrifício de seu Cordeiro, mas para publicar sua glória por meio dele: Cristo há de voltar, e consumar a fé daqueles que em Abraão são chamados "descendência de Deus".
Transição
Abraão não foi chamado de “pai da Fé” por que tinha uma grande fé, mas porque foi o progenitor de uma linhagem que assim como ele, contemplam o Cordeiro que foi preso entre os arbustos, sacrificado em seu lugar, como penhor da esperança que consuma a Redenção.
O texto de Gênesis 22.1-19 mostra o quadro da obra redentiva desvelada figuradamente a Abraão, a fim de que este tenha sua fé amadurecida ao ponto de poder entender como se dará a execução dos planos divinos que lhe garantem a posse e o usufruto da bênção do SENHOR.
Moisés usa o relato da prova de Abraão para confrontar o povo de Israel quanto a solidez de sua fé no mesmo plano redentivo. Posto para peregrinar pelo deserto, Israel deparou-se com diversos desafios, tal como o patriarca precisou enfrentar alguns. Entretanto, momento após momento em que as dúvidas lhe assaltavam o coração, o que manteve a fé do patriarca acesa foi a esperança da redenção posta nas palavras de Deus. Porém, no momento apoteótico da sua jornada, Abraão viu-se frente à uma revelação figurativa da salvação que lhe estava reservada. Do mesmo modo, os olhos do povo de Israel viram as portentosas maravilhas que Deus realizou no Egito, e de como no meio de todos aqueles sinais, um em específico clarificou ao povo as intenções redentoras: o sacrifício do cordeiro pascal, cujo sangue livrou os hebreus da praga da morte do primogênitos.
Assim, outro paralelo é feito entre Israel e Abraão: ambos contemplaram a menção messiânica de um cordeiro que foi morto, recebendo sobre si as punições e maldições devidas ao transgressor para salvação deste, garantindo a libertação da escravidão e servidão que o distanciava do SENHOR.
A saga abraâmica conclui-se com o vislumbre da plenitude dos tempos, quando o Cordeiro de Deus entregue para o resgate de seus eleitos do poder da morte e do pecado, surge no cenário histórico e é sacrificado, e tendo sido ressuscitado, publica a glória de Deus sobre toda a criação que somente deve aguardar o momento da consumação da obra divina.
O texto de Gênesis 22.1-19, nos aponta também o percurso redentivo que todo o povo de Deus deverá empreender a fim de que veja, pela fé, aquilo que contemplou de longe Abraão e todos os crentes do passado, a saber: a obra salvadora consumada e a entrada na terra prometida. Em face disso, este texto bíblico nos atinge diretamente através de alguns princípios a serem observados.
Aplicações
1. A jornada cristã proporciona o amadurecimento na fé.
Todo o percurso trilhado por Abraão resultou num aprofundamento na fé; isto é, uma compreensão cada vez mais clara e evidente da obra salvadora. Da mesma forma, como argumentado, o povo de Israel, tendo em vista o mesmo princípio tipológico, recebeu o fortalecimento na fé de que precisava para continuar confiando no SENHOR como seu Salvador, qual seja: a substituição sacrificial e expiatória de um inocente no lugar dos pecadores, para redenção do povo e a glória de Deus.
Não podemos ler um texto como Gênesis 22.1-19 sem fazer a ponte que nos conecta diretamente a história de todo o povo de Deus ao longo do tempo, que, vendo a mesma promessa de longe, caminha progressivamente para um aprofundamento do relacionamento com Deus mediante um aprimoramento da fé de que o Messias (i.e. Cristo) é o Cordeiro de Deus que nos salva e redime, livrando-nos da morte eterna que o pecado legaria, não tivesse ele intervido em nossa história.
Precisamos realizar um autoexame. Precisamos averiguar se a compreensão e certeza de que dispomos no Espírito de que fomos redimidos por Cristo tem crescido em nossos corações. A história da redenção não é um filme que assistimos e nos emocionamos com as cenas chocantes em que o protagonista se sacrifica pelo "bem-comum". A epopéia redentiva tem implicações diretas na nossa vida espiritual.
O que é a fé para nós? é algum tipo de crença mística num ser sobrenatural que de alguma forma nos quer bem? será que a fé para nós é simplesmente uma identificação genérica religiosa, isto é: "nós somos cristãos, fulano é romanista, beltrano é espírita" etc?
Lembremos da definição do autor Aos Hebreus: fé é certeza, convicção, que, no caso Abraão, lhe proporcionou a contemplação da obra salvadora. O patriarca não era um homem religioso apenas, não era alguém que "acreditava em Deus" num sentido indireto ou trivial, mas era alguém que em determinado momento de sua história recebeu a revelação do Criador que o chamara a salvação, e passou por um longo período em que sua fé foi sendo moldada e refinada até o ponto de entender que tal redenção só viria mediante o sacrifício do Messias em seu lugar, garantindo-lhe terminantemente a bênção prometida. Essa compreensão por sua vez, o fez andar com Deus e ser íntimo dEle, a tal ponto de o próprio Deus lhe chamar de "meu amigo" (2Cr 20.7; Is 41.8). Sua fé tem crescido e amadurecido através da contemplação da obra de Cristo, ao ponto de lhe conferir o título de "amigo de Deus"? Os méritos não são de Abraão, mas de Deus, que fez com que o patriarca ,vendo o Cordeiro preso nos arbustos, tivesse sua fé refinada.
Nós, hoje, não vemos um cordeiro no arbusto; contemplamos a Cristo de maneira infinitamente melhor, pois o Espírito irrompe fé em nossos corações de maneira muito mais intensa e abundante do que nos tempos de Abraão, pois naquele episódio, Abraão só desfrutou do vislumbre, nós por outro lado, vivemos no tempo em que a Nova Aliança já foi inaugurada, e isso indica uma amplitude e profundidade muito além daquilo que experimentou Abraão. Assim, resta-nos a pergunta: nossa fé está madura? Tal amadurecimento só virá a partir do momento em que erguermos os nosso olhos a fim de contemplar o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo oferecido em nosso lugar.
2. Pela contemplação do Cordeiro de Deus, obtemos a certeza da promessa da redenção e o amadurecimento da fé.
Não é preciso muito esforço para ver como o texto nos aponta para a obra trinitária de redenção, executada no tempo e no espaço por Aquele que fora prometido e designado na eternidade para ser o mediador da Aliança entre nós e Deus. Abraão demonstrou sua confiança no SENHOR ao revelar para Isaque, seu filho, a razão de porque descansava tranquilamente no cumprimento da obra redentiva que lhe garantiu a linhagem da qual viria o Salvador: "Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto" (v. 8).
Ainda antes de ver a providência divina que lhe fez reaver - figuradamente (Hb 11.19 - Isaque dos mortos, a fé conferida a Abraão mostrou-lhe o quanto a graça redentiva seria derramada largamente sobre ele e sobre todo aquele que pela fé, contemplasse o Cordeiro de Deus.
O apóstolo Paulo, interpretando todo o percurso da saga abraâmica, salienta:
Abraão, esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações, segundo lhe fora dito: "Assim será a tua descendência". E, sem enfraquecer na fé, embora levasse em conta o seu próprio corpo amortecido, sendo já de cem anos, e a idade avançada de Sara, não duvidou, por incredulidade, da promessa de Deus; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera. Pelo que isso lhe foi também imputado para justiça. E não somente por causa dele está escrito que lhe foi levado em conta, mas também por nossa causa, posto que a nós igualmente nos será imputado, a saber, a nós que cremos naquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus, nosso Senhor, o qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação (Rm 4.18–25).
Todo aquele que pela fé, contempla a obra redentiva de salvação, tem sua fé amadurecida ao ponto de poder suportar a espera da consumação dos tempos, quando não veremos pela fé, mas alcançaremos a graça de vislumbrar a majestade do Cordeiro de Deus assentado no trono, donde regerá o Novo Céu e Nova terra.
A jornada neste mundo é árdua e cansativa, mas a nossa fé é amparada unicamente pela viva esperança que temos no Cordeiro que Deus providenciou para si, redimindo seu povo, cumprindo a Aliança que prometera aos nossos pais: de que nós seríamos o seu povo, e ele, o nosso Deus.
Conclusão
Séculos depois de Abraão ter contemplado o cordeiro preso entre os arbustos, entregue para sofrer e ser abatido no lugar de Isaque, o apóstolo João viu o Cordeiro prefigurado ao patriarca. Porém, na visão de João, o Cordeiro não mais está preso entre os arbusto:
Então, vi, no meio do trono e dos quatro seres viventes e entre os anciãos, de pé, um Cordeiro como tendo sido morto. Ele tinha sete chifres, bem como sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra. Veio, pois, e tomou o livro da mão direita daquele que estava sentado no trono; e, quando tomou o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma harpa e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos, e entoavam novo cântico, dizendo:
Digno és de tomar o livro
e de abrir-lhe os selos,
porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus
os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação
e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes;
e reinarão sobre a terra (Ap 5.6–10).
O que Abraão viu através de referência, João viu em revelação. Todos nós, porém, desde Adão até o último eleito a abraçar o Evangelho, veremos a glória de Deus em seu Cordeiro, que venceu, dando-nos o acesso a herança prometida: Jesus Cristo.