Gênesis 19

Série expositiva no Livro de Gênesis  •  Sermon  •  Submitted
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Moisés continua expondo a narrativa da relação entre Abraão e Ló, e de como o SENHOR, por sua graça e misericódia, faz distinção entre ímpios e justo, retirando este do meio da iniquidade, a fim de salvá-lo do juízo vindouro sobre o pecado, advertindo o povo de Deus sobre a tolice de misturar-se com iníquos.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 18
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Levando em consideração a retomada da narrativa do relacionamento entre Abraão e Ló, é perceptível que os capítulo 18 e 19 fazem parte de um único episódio, dividido em duas cenas: a primeira, serve como arcabouço e adiantamento principiológico que explica as ações que ocorrerão na segunda.
Dessa forma, o capítulo 19 demonstra os fatos resultantes de tudo aquilo que foi explicitado como as intenções divinas que darão continuidade aos planos redentivos do SENHOR sobre Abraão, que abrangem também seu sobrinho Ló, como símbolo daquela promessa divina de que todos os povos da terra seriam abençoados por meio do patriarca.
Se o ponto central da primeira cena (Gn 18) era perceber como a intercessão sacrificial de Abraão foi o instrumento da misericórdia divina, prefigurando o sacrifício que deveria ser pago (juntamente com a intercessão) pelo Descendente prometido (i.e. o Messias; Cristo Jesus), a fim de que alguém fosse salvo da ira divina contra o pecado, o foco da segunda cena (Gn 19) é expor a execução desse propósito, ampliando a perspectiva tanto em relação a benevolência do SENHOR em salvar seus favorecidos, quanto a intensidade da ira divina frente ao pecado.
Como é nítido, esse princípio duplo de juízo e salvação é retomado por Moisés que remete a atenção do leitor/ouvinte de seu texto (Gênesis) ao progresso do plano redentivo em mais um desdobramento. Saindo da era antiga, e adentrando o tempo dos patriarcas, o conhecedor do texto de Gênesis poderia olvidar-se de que toda a narrativa até este ponto está centralizada no desenvolvimento dos planos do SENHOR em redimir seus eleitos por meio da promoção do juízo contra o pecado, que ressalta a graça divina para com o povo a quem Deus tem chamado à si. Porém, a medida que os fatos vão se tornando mais focalizados em personagens específicos (e.g. de Noé; história mundial, para Abraão; história local), o modus operandi da redenção também é enriquecido por detalhes.
Logo, Gênesis 19, é não somente mais um episódio em que Abraão é ligado ao povo de Deus como um referencial do seu desejo de abençoar este povo, mas também, um elo que reconecta a narrativa àquele propósito anteriormente exposto; de salvar seus eleitos mediante o derramamento de juízo.
Com isso, uma leitura sintética do texto de Gênesis 19 sugere que o ponto central do episódio é a demonstrar a salvação distintiva como resultado da intercessão e o juízo soberano como resposta à degeneração moral e ao pecado.
Veremos hoje como o autor do texto de Gênesis nos apresenta a graça distintiva de Deus em favor do justo.
Elucidação
A narrativa começa concentrando-se na ação dos dois homens que saíram da presença de Abraão (Gn 18.22) chegando a cidade de Sodoma. À luz da própria narrativa anterior, e pelo modo como Gn 19 os expõe, os homens que tratam com Ló são na verdade anjos enviados da parte de Deus para que sua vontade fosse plenamente executada em juízo contra aquelas cidades. O uso dos anjos neste contexto possui um caráter representativo enfático: a celeridade divina em fazer cair sobre aqueles povos a sua ira, devido o grande pecado que promovem: rebelião e degeneração.
Em face disso, como é alarmante o estado daquelas cidades, a medida punitiva é dada à altura: servos leais (anjos) são enviados da parte de Deus, a fim de que vinguem o nome do Criador da afronta perpetrada pelos homens de Sodoma, Gomorra e arredores.
A partir do anúncio da chegada dos anjos naquela cidade, é iniciada uma tensão que percorrerá a narrativa até ao final do episódio, tensão esta que gira em torno de três personagens: os dois anjos, Ló e sua família, e os homens da cidade.
Dos versos de 2 a 11 o foco do narrador é justificar a vontade divina em punir aquela região com mão forte devido sua corrupção. Ló, conhecendo a depravação dos homens da cidade onde habitava, tenta dissuadir os anjos a ficar em sua casa, a fim de protegê-los. Sua tentativa é frustrada, pois, os homens de Sodoma avistaram os anjos que acompanhavam Ló, e intentaram violentá-los. Neste ponto, a narrativa é entremeada por um comentário do autor que reforça a devassidão daquela cidade:
Gênesis 19.4 RA
Mas, antes que se deitassem, os homens daquela cidade cercaram a casa, os homens de Sodoma, tanto os moços como os velhos, sim, todo o povo de todos os lados;
O texto exibe que o cenário de corrupção era generalizado. Diferentemente da argumentação intercessória feita por Abraão, em que supunha a existência de pelos menos 10 justos naquelas cidades, o texto revela que não havia nenhum, ou, à guisa da relação entre Abraão e Ló, o único justo a ser poupado da destruição era este e sua família.
"Dos moços até os velhos", isto é, todos os habitantes daquela cidades, até mesmo os mais velhos, responsáveis pelas decisões da cidade, funcionando como autoridades, promoviam a corrupção e pecaminosidade.
Outro fator estrutural que aparece no texto é um paralelo com a própria narrativa acerca de Noé. É perceptível uma correspondência entre os acontecimentos em Gn 19 com a saga noética, como podemos observa a partir das seguintes comparações:
1. Noé era o único justo no meio de toda uma geração (Gn 6.9; 7.1) // Ló era o único "justo" em Sodoma e Gomorra (Gn 19.6-8, 9).
2. O autor exibe a situação de corrupção em toda a terra (Gn 6.11) // Não havia nenhum justo na cidade (Gn 19.4).
3. Após o anúncio dos planos de Deus, o SENHOR apressa-se em executar o juízo e em proporcionar o livramento para Noé e sua família (Gn 7.4) // Os anjos anunciam o juízo e apressam Ló para que se retire, livrando-o da ira por vir (Gn 19.15-16).
4. Deus lembra-se de Noé e o mantém a salvo, fazendo beneficiário da misericórdia divina (Gn 8.1) // Deus lembra-se de Abraão e beneficia Ló, sendo misericordioso para com este (Gn 19.29).
Estes paralelos são usados pelo autor a fim de conectar ambos os relatos sob os mesmos princípios de salvação graciosa através do julgamento: o justo será poupado por Deus do juízo iminente mediante o usufruto de sua graça, enquanto que o ímpio é alvo de toda cólera do Criador, como sugere a construção frasal que remete a intercessão de Abraão feira no verso 16: "sendo-lhe o SENHOR misericordioso", isto é, havendo um único justo, o Criador foi fiel ao que disse a seu servo Abraão, e fez distinção entre justo e ímpio.
Após uma pequena demonstração do que esperava os cidadãos de Sodoma, por meio de um julgamento parcial: quando os anjos ferem de cegueira os que queriam violentá-los (v.10-11), o foco narrativo passa a ser a retirada abrupta e célere de Ló daquela localidade, promovendo sua salvação e de seus familiares, embora seus futuro genros, não levando a sério o anúncio de destruição, tenham rejeitado a oportunidade de livramento.
Entretanto, o texto não apresenta a rapidez dos anjos em tirar Ló daquela cidade como sendo uma pressa motivada apenas pelo juízo, pois, posteriormente, os mesmos afirmam que não poderão executar a vontade divina até que Ló esteja completamente fora de perigo, e aguardariam até que ele se refugiasse seguramente (v.22). A pressa dos anjos é uma símbolo da graça divina em salvar seus eleitos: ansiando pelo cumprimento o fiat divino, demonstram o amor e cuidado do SENHOR, tomando o próprio Ló pela mão e o conduzindo para fora da cidade.
Após toda essa tensão, quando Ló finalmente entra na cidade em que escolhera refugiar-se, a declaração de execução judicial é publicada:
Gênesis 19.24–25 RA
Então, fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor, sobre Sodoma e Gomorra. E subverteu aquelas cidades, e toda a campina, e todos os moradores das cidades, e o que nascia na terra.
A destruição de Sodoma e Gomorra é um marco histórico usado pelos escritores bíblicos para demonstrar o completo desagrado de Deus frente ao pecado. Como veremos mais adiante, os autores bíblicos ao referirem-se a este evento, usam-no como paradigma que explicita o sentimento divino diante da corrupção moral que afronta o Criador, sobretudo para pecados coletivos, numa que tal episódio é colocado em paralelo antitético com a cena anterior: Abraão intercede junto a Deus por seu sobrinho, usando como argumento o apelo a misericórdia divina quanto a possibilidade de haverem na cidade um determinado número de "justos", número que decai, a fim de que Deus entenda que a intercessão feita por Abraão é direcionada à uma pessoa específica: Ló. Porém, isso também reforça o fato de que naquelas cidades, não havia nem sequer dez justos, dado seu nível de depravação e corrupção moral.
A descida de fogo e enxofre sobre as cidades pecadoras como uma intervenção milagrosa voltada à punição e ao juízo divinos, é mais um referencial do texto deixado pelo autor ao povo de Deus. Assim como havia sido dito a Abraão que Deus julgaria "a gente a quem tem de sujeitar-se"(Gn 15.14) referindo-se ao Egito, obliterado pelas 10 pragas enviadas da parte do Criador contra ele, um demonstrativo é dado para Abraão de como tal juízo aconteceria, e de como os justos seriam retirado do meio dos ímpios, fazendo Deus justiça ao que prometera (Gn 18.24-25), e também à Israel é exposto o que aguarda os povos que deverão sentir o gosto da ira soberana do SENHOR, que fará do próprio Israel um instrumento de seu furor, assim como foi com as 10 pragas, e no passado, como foi com o derramar de fogo e enxofre.
Unido à isso, O povo de Israel deveria estar ciente de que assim como Deus intrumentalizou seu juízo por meio de anjos que enviou até às cidade de Gomorra e Sodoma para as destruir, tendo em vista que seu pecado alcançou niveis terríveis de depravação, da mesma sorte acontecerá aos povos para onde Israel está migrando. O povo faz parte de um plano superior em que por meio deles, Deus há de julgar e punir os amorreus, cuja medida da iniquidade havia chegado ao ponto determinado pelo próprio SENHOR para sua punição (cf. Gn 15.13-16), e também, por meio desse juízo, o ímpio é desterrado, em favor do justo; poupado por causa da graça eletiva do SENHOR.
Abraão e Israel - e nós, a igreja do SENHOR - são testemunhas, em seus respectivos , tempos, que a mão poderosa de YHWH, move-se em favor do cumprimento de suas promessas, o que inclui, a aversão ao mal e ao pecado, punindo seus promotores.
Sodoma, Gomorra e arredores são então usadas pelo escritores bíblicos como exemplo de que uma sociedade corrompida não escapará aos olhos do Soberano, e seu clamor, isto é, o acumulo de pecados, chegará aos seus ouvidos, provocando-o à ira e acarretando seu juízo implacável.
Entretanto, decorrente disso, o esboço tópico em paralelo reforça a infinidade da graça do SENHOR e a perfeição de seu julgamento: nos homens, demonstrativos de ira geralmente são incontroláveis, acarretando consequências inclusive para não envolvidos. Deus por outro lado, separa sabiamente seus favorecidos daqueles que serão alvos de sua cólera. Sua graça não inibe nem corrompe sua justiça, mas age simultaneamente.
Porém, a conclusão da história em Gênesis 19 reserva alguns dessabores. A narrativa prossegue para um epílogo, onde o final da trajetória de Ló é remetida ao início: suas escolhas de afastar-se de seu tio, não confiando nas promessas feitas a ele (Gn 13), o levaram não somente a fugir às pressas de uma cidade condenada, mas ao fundo do poço da corrupção moral, em que se deixa conduzir pela índole pecaminosa de suas próprias filhas, cometendo uma abominação. Surpreendentemente, um desfecho tão horendo reserva para os leitores/ouvintes do texto um outro princípio do enredo salvador escrito por Deus.
O adendo feito pelo autor demonstra que embora tenha sido salvo da ira divina, a corrupção do coração acompanha o homem, levando seus leitores a observarem que só haverá libertação completa, quando a obra salvadora for executada de maneira derradeira pelo descendente prometido. A saída de Ló de Sodoma e Gomorra fora apenas um sinal dado a ele, Abraão e Israel, de que somente o Messias poderá salvar o homem não somente do juízo vindouro sobre os ímpios, mas também da natureza pecaminosa de seu próprio coração.
O paralelo entre as história de Noé e Ló também são reforçados pelos detalhes dessa última parte da narrativa: Assim como Noé embriaga-se e favorece um cenário onde o pecado se revela como ainda presente na continuação da raça humana, Ló, embebedando-se, faz parte de um enredo nefasto de incesto, que origina toda uma linhagem corrupta, fato que é usado pelo autor para apresentar aos seus ouvintes/leitores a origem de povos inimigos de Israel que deverão ser alvos da ira divina por causa de seus pecados.
O mal ainda espreita, esconde-se nos recantos mais obscuros do coração humano, fazendo com que cada justo que pisou, pisa ou pisará esta terra anseie pelo livramento, não da incineração de uma cidade corrupta, mas pela restauração de toda a criação, o que inclui seus próprio corações corrompidos.
Comentando esse episódio trágico da vida de Ló, Carlos Osvaldo comenta:
O fim lamentável da vida insípida de Ló por meio da destruição de Sodoma é agravado pela completa vergonha inserida permanentemente nos descendentes de Ló em razão de sua origem impura [isto realmente serve como contraste para a pureza de Israel, cuja origem foi uma promessa divina] (19.1–38) (CARDOSO, 2014), 43.
Ainda que sendo justo (i.e. eleito), como veremos à luz do texto de 2Pedro, as consequências das escolhas passadas de Ló foram catastróficas: 1) sua mulher, apegada ainda a cidade de Sodoma, sofre a punição divina de ter olhado para trás, certamente sentindo o fato de ver sua cidade ser destruída, e 2) Suas filhas replicam a devassidão que testemunharam naquela cidade, convencendo seu pai a praticar incesto, dando origem a povos que tornaram-se famosos pela idolatria e corrupção moral (i.e. moabitas e amonitas). Tecendo uma relação das desastrosas consequências daquela escolha feita por Ló em Gn 13, William MacDonald relaciona:
Suas duas filhas o embriagaram e o incitaram a cometer incesto. Ambas engravidaram. A primogênita deu à luz um filho que chamou de Moabe, e a mais nova, um filho em quem colocou o nome de Ben-Ami. Assim surgiram os moabitas e os amonitas, povos que atormentaram a vida de Israel: as mulheres moabitas seduziram os homens de Israel à imoralidade (Nm 25:1–3), e os amonitas ensinaram o povo a adorar o deus Moloque, inclusive com a prática do sacrifício de crianças (1Rs 11:33; Jr 32:35). Em 2Pedro 2:7–8, lemos que Ló era um homem justo, mas o estilo de vida mundano que levava acabou enfraquecendo seu testemunho (v. 14) e causou a perda de sua esposa (v. 26), seus genros, seus amigos, sua comunhão espiritual (não havia congregação em Sodoma), seus bens (Ló chegou rico, mas partiu pobre), seu caráter (v. 35) e quase a vida (v. 22). O comportamento depravado de suas filhas mostra a influência dos padrões imorais de Sodoma. Não há escapatória (Hb 2:3) ( MacDonald, 2011, p. 31–32).
No que tange a este ponto é válido notar que Moisés usou o incesto de Ló com suas duas filhas como uma exortação acerca da lei do levirato que haveria de ser decretada por Deus sobre o povo de Israel. Embora o objetivo apresentado pelas filhas de Ló fosse válido, isto é, continuar a linhagem de seu pai dando-lhe descendência, a lei do levirato não licenciava o incesto para cumprimento do mandamento, conforme prescreve Deuteronômio 25.5-10. O ponto focal desta legislação é a preservação da linhagem dos filhos de Israel, tendo em vista que por meio da descendência, o Messias seria providenciado. Assim, os que pela fé cressem na salvação o aguardando por meio da obediência a esse mandamento, seriam justificados. Logo, obedecer a lei do levirato era um demonstrativo de confiança e fé de que o SENHOR haveria de suscitar da descendência de Israel, o salvador. Por essa razão, a desobediência a esse princípio deveria ser retaliada de maneira tão veemente; com a humilhação pública (Dt 25.9-10).
Quando as filhas de Ló intentam dar prosseguimento a descendência de seu Pai por meio da vileza de um incesto, o autor do texto exibe - pela referência aos povos oriundos dessa união pecaminosa - um resultado tão desastroso quanto o ato em si: a descendência de Ló, ao invés de ser santa e casta como deveria ser o povo de Israel, é reconhecida por sua corrupção e rebelião contra Deus, inclusive pela perseguição ao próprio povo de Israel futuramente.
Em síntese, Gênesis 19 nos apresenta o juízo divino como instrumento da distinção executada por Deus entre justo e ímpio, salvando aqueles e punindo estes. Ao chegarmos ao Novo Testamento, observamos esta mesma tese como arcabouço interpretativo deste texto.
Leitura de Gênesis 19 feita pelo Novo Testamento
Em Lucas 17.26-30, Cristo exemplifica e demonstra esse mesmo princípio, conectando os episódios da saga noética e à narrativa abraâmica em Ló, assim como fez Moisés, ao testemunho que dá quanto a como será o seu retorno, e principalmente, como esses acontecimentos antecipam o modo através do qual o próprio Cristo executará salvação e juízo.
Em sua fala, ele demarca um elemento em comum com ambos os episódios:
Lucas 17.26–30 RA
Assim como foi nos dias de Noé, será também nos dias do Filho do Homem: comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio e destruiu a todos. O mesmo aconteceu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam; mas, no dia em que Ló saiu de Sodoma, choveu do céu fogo e enxofre e destruiu a todos. Assim será no dia em que o Filho do Homem se manifestar.
Antes que o juízo recaísse sobre os pecadores, tanto Noé quanto Ló, foram favorecidos por Deus sendo salvos do derramar do furor divino contra o pecado. A graça eletiva não somente proporciona a salvação, é também um instrumento por meio do qual o justo juiz assevera seu caráter santo e integro, assim como destacou Abraão (Gn 18.25): O juiz de toda terra, tendo proporcionado um sacrifício aceitável como meio de expiação e justificação de seu povo, separa-o de todos aqueles que destinou à perdição, tendo estes se corrompido por meio de uma disposição reprovável em seus corações, rebelando-se contra o Criador, à exemplo dos habitantes de Sodoma e Gomorra antes da destruição.
Em sua advertência contra os falsos mestres, o apóstolo Pedro, amplia ainda mais esse conceito expondo o quanto a impiedade traz sobre si o constante assombro da vingança divina:
2Pedro 2.6–9 NAA
E, reduzindo a cinzas as cidades de Sodoma e Gomorra, condenou-as à ruína completa, tendo-as posto como exemplo do que viria a acontecer com os que vivessem impiamente; mas livrou o justo Ló, que ficava aflito com a conduta libertina daqueles insubordinados. Porque esse homem justo, pelo que via e ouvia ao morar entre eles, atormentava a sua alma justa, dia após dia, por causa das obras iníquas que aqueles praticavam. Assim, o Senhor sabe livrar da provação os piedosos e manter os injustos sob castigo, para o Dia do Juízo,
Dois fatores ainda são ainda dignos de destaque em relação a esta assertiva do apóstolo: a primeira delas é a ideia de que Sodoma e Gomorra são "exemplos a quantos venham a viver impiamente" (v. 6). A perspectiva do apóstolo é de que um lembrete silencioso é deixado para os que optam por perverte-se entregando-se a um modo de vida reprovável aos olhos de Deus, entretanto, como estes, em seus corações caídos, não podem aquiescer ao aviso divino, o exemplo também é usado por Pedro como advertência aos justos: mesclar-se aos ímpios em seu padrão moral pervertido, em que louvam o pecado como algo bom, é buscar sofrer juntamente com eles as duras penas do castigo de Deus. O justo, aquele que nasceu de novo, foi separado pela graça do SENHOR, não para viver "seguindo a carne" (v. 10), mas mediante a justiça da fé, segundo andou Abraão, como já exposto em capítulos anteriores.
Em segundo lugar, Ló, enquanto no meio da perversidade daqueles ímpios, via-se atormentado e afligido, pois sabia que habitava no meio de um povo iníquo. Não haverá paz para o justo enquanto estiver no meio de transgressores, ainda que não praticando as mesmas obras, pois infelizmente, verá o quanto o nome de Deus é desonrado, o quanto tais pessoas são capazes de rebelar-se contra a ordem do Soberano.
Transição
Gênesis 19 é a continuação e desfecho narrativo daquilo que fora iniciado em anteriormente (Gn 18) como sendo o avanço do plano redentivo, julgando e condenando o pecado, tal como prometido e revelado a Abraão. O texto exibe os desdobramentos da obra salvadora em cumprimento ao que fora prometido ao patriarca: de que todas as nações da terra (representadas por Ló) haveriam de ser abençoadas (Gn 18.19-19).
Todos esses princípios são ampliados através da ação salvadora de Deus em favor de Ló, por meio do sacrifício e intercessão de Abraão, como um figurativo da graça redentiva divina, que haveria de executar tal sacrifício em Cristo Jesus. Porém, há também outros aspectos do texto, que destacam sua relevância para a igreja do SENHOR hoje.
Aplicações
1. Deus faz distinção entre ímpio e justo.
Toda a narrativa concentra-se em explicitar a verdade básica que responde a pergunta retórica feita por Abraão em Gn 18.25, como já temos visto, qual seja: Deus jamais julgará o justo com o ímpio, mas fará justiça (Gn 18.23,25). Os atos condenatórios de Deus sempre farão distinção entre aqueles que ele têm chamado à vida eterna por meio de sua própria obra redentiva, e os que foram preteridos, manifestando sua condição através de um padrão de vida imoral e avesso ao caráter e Lei do Criador.
Deus providenciou que seus anjos, literalmente, tomassem pela mão o sobrinho de Abraão e o conduzissem para distante do lugar onde a ira de Deus seria derramada.
Não é diferente com a igreja de Cristo hoje, que vive num mudo cujo prazo de validade está próximo do vencimento. A sentença já foi decretada, e a própria criação é usada por Deus para demarcar os sinais que apontam para a iminência do juízo final. Porém, a narrativa bíblica nos mostra claramente que não seremos tragados pelo furacão da ira divina, pois o grande juiz de toda a terra não possui uma fúria descontrolada. Seu alvo é claro, e ele não atingirá nada que não pretenda ferir: todos aqueles que estão guardados em Cristo.
Quando olhamos para a Escritura, somos lembrados que são os perversos que "não prevalecerão no juízo, nem os pecadores, na congregação dos justos" (Sl 1.5). Diferente do que pensam muitos, é a justiça divina que nos garante a salvação mediante sua graça, pois o SENHOR, ao nos salvar em Cristo, garante que não pereceremos debaixo do juízo por vir.
2. Como justos, somos convocados por Deus a nos afastarmos dos ímpios.
Quando lemos textos como Apocalipse 18.4-5, observamos uma visão do apóstolo João que ouviu uma advertência feita aos santos em referência a Babilônia:
Apocalipse 18.4–5 NAA
Ouvi outra voz do céu, dizendo: “Saiam dela, povo meu, para que vocês não sejam cúmplices em seus pecados e para que os seus flagelos não caiam sobre vocês. Porque os pecados dela se acumularam até o céu, e Deus se lembrou das injustiças que ela praticou.
Naturalmente, o imperativo bíblico para que nos afastemos dos ímpios não indica que devamos viver distantes no sentido geográfico ou físico, mas que nossas obras sejam devem ser distintas; que não podemos concordar ou ser coniventes com seu procedimento podre e pecaminoso, do contrário, atrairíamos sobre nós a disciplina divina.
Embora saibamos que não seremos destruídos finalmente como os ímpios, com certeza o SENHOR haverá de nos cobrar por nossa corrupção e união ética com aqueles que são contrários a sua Lei. E se nos pesar ao coração o fato de termos de nos afastar das obra iníquas deles, o próprio Cristo nos adverte: "Lembrai-vos da mulher de Ló"(Lc 17.32), que sentida pela destruição de sua cidade, não levando em consideração a justa ira de Deus, olha para trás num gesto de apego, e é imediatamente punida. Não há união entre luz e trevas, entre bem e mal, entre santidade e corrupção.
3. Os danos da desobediência a Deus sempre devem estar na nossa mente, tanto quanto o zelo e amor em obedecê-lo.
Na passagem em questão, os danos das escolhas de Ló em habitar no meio de um povo ímpio foram enormes: precisou fugir para não ser atingido pela destruição; perdeu sua esposa, e por fim, foi levado pelas próprias filhas a pecar contra Deus, o que desencadeou como resultado, toda uma linhagem pecaminosa.
Os avisos da Escritura quanto a consequência de nossas ações, quando aliadas ao pecado, são claros. Ló pagou caro por ter se deixado levar pela aparência e por ter sido tolo ao não confiar nas promessas de Deus para o seu tio. Armou tendas até que chegou ao lugar em que por pouco, não foi seu túmulo.
Podemos optar pelo pecado, no sentido de que, tendo ainda resquícios dele em nossos corações, estaremos apenas dando vazão à nossa natureza. Porém, saiba que se você é um filho de Deus, essa escolha tirará a sua paz, e por fim, verá por seus próprio olhos as consequências desastrosas que causaram, sendo possível que muitas delas não sejam reversíveis.
Diante de nós está a bênção e a maldição: escolhamos pois a bênção para que honremos o nome do SENHOR, nosso Deus, desfrutando das benesses de sua graça.
Conclusão
Gênesis 19 nos mostra a graça de um Deus justo e amoroso que providenciou que em Cristo, fôssemos salvos do derramamento de sua justa ira. No dia do juízo, assim como Abraão, olharemos pela campina (Gn 19.27-28) e avistaremos as cinzas de um mundo corrompido darem lugar ao alvorecer do novo céu e nova terra onde habita a justiça, sabendo que Deus lembrou-se da aliança que fez com seu Filho, garantindo-nos a salvação.