Gênesis 9.18-29

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No episódio do pecado de Cam, o propósito redentor de Deus revelasse na demonstração da identidade de Cam como filho da serpente e da união de Sem e Jafé como semente da mulher.

Notes
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“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 9.18-29
Pr. Paulo Rodrigues
Introdução
O texto que lemos somado à genealogia seguinte enfatiza o tronco hereditário que demarca os povos procedentes dos dois cabeças genealógicos apresentados no texto analisado neste trabalho exegético. Traçando a história do povo de Deus, Moisés não somente exibe claramente as raízes do povo hebreu, mas também trata de explicitar a gênesis dos povos inimigos que habitam a terra de Canaã, reforçando a ideia de não associação com esses povos e justificando a proibição que enfatiza isso, mostrando que tais nações são rebeldes ao Criador desde o início dos tempos.
Elucidação
A teologia de progressão da história por meio do conflito entre as duas sementes (da mulher e da serpente) tem percorrido todo o livro de Gênesis, como fora exposto até este ponto em análises exegéticas anteriores. Como não poderia ser diferente, o ciclo criação-queda-redenção encontra protagonismo em mais uma tensão exposta pelo redator a fim de encaminhar sua narrativa para o bloco seguinte, onde a história da redenção continuará desdobrando-se. O ponto em questão agora é perceber a animosidade entre as linhagens através dos acontecimentos que introduzirão a divisão básica dos povos com os quais Israel terá de lidar ao entrar na terra prometida.
A bênção e maldição de Deus percorrem o livro de Gênesis, como clarificado no item 2.4 (cf. Gênero, estilo ou tipo literário) de maneira simultânea, revelando o caráter soberano de Deus em estruturar sua obra redentora de maneira a salvar seu povo e- condenar os rebeldes. Faz-se necessário ver como este episódio (Gn 9.18-29) elucida esse tema, com base nos personagens que foram destacados pelo autor como objetos dos intentos do Soberano.
Imediatamente após a narração do desfecho do episódio cataclísmico do dilúvio, onde benção e maldição foram simultaneamente expostas, um novo cenário é estabelecido a fim de que uma nova crise ecloda, servindo de substância para a explicação genealógica do capítulo 10.
Em determinado momento, após plantar uma vinha, Noé, embriagado de vinho, põe-se nu dentro de sua tenda. Cam, ao ver a nudez de seu pai, fomenta em seu coração um sentimento de desonra, expondo aquela situação vexatória a seus irmãos. O termo hebraico que define a delação de Cam exprime seu pecado “וַיַּגֵּ֥ד” (hb. lit. “wayagêd” – “fez saber”, “expôs”).
Frente ao ato pecaminoso de exposição desonrosa executado por Cam, Noé deflagra uma maldição que qualifica não somente os personagens pontuais nominados por sua fala, mas também a toda a descendência após eles. A maldição posta sobre Cam o tornará servo dos servos de seus irmãos, cativo e preso a um derradeiro e inevitável destino onde a derrota lhe acompanhará. Compreendendo a maldição por esse prisma, é possível ver o paralelo entre a maldição da serpente (i. e. lamber o pó da terra - Gn 3.14) e o aprisionamento de Cam a uma situação de humilhação e servidão sem fim (Gn 9.25).
O pecado de Cam é contrastado com a benevolência e respeito típicos de Sem e Jafé, que recusando contemplar a nudez de seu pai, agem de maneira respeitosa e cuidadosa, a fim de que este não seja desonrado. Em face disso, a benção de enaltecimento e favor divino são direcionadas a ambos.
Centralizando a narrativa, está a fusão de horizontes entre Sem e Jafé como representando um mesmo povo ou descendência, tornando assim ainda mais claro a rivalidade entre as genealogias. Há uma dupla possibilidade nas bençãos de Sem e Jafé nos versos 26 e 27:
E ajuntou:
Bendito seja o SENHOR, Deus de Sem;
e Canaã lhe seja servo.
Engrandeça Deus a Jafé,
e habite ele nas tendas de Sem;
e Canaã lhe seja servo.
A primeira possibilidade é a de que a referência a “ele” no verso 27 em termos da habitação nas tendas de Sem, estaria voltada a Deus, como sugere Walter Kaiser:
Nossas razões [para essa compreensão] são as seguintes: (1) presume-se que o sujeito da oração anterior continue na oração seguinte quando o sujeito é oculto, o que se aplica a este em que se diz apenas “habite ele”; (2) o emprego do objeto indireto da linha anterior como sujeito (Jafé) exigiria fortes razões contextuais para se justificar; (3) o contexto dos próximo capítulo designa Sem como o primeir em horna quanto às bênçãos; e (4) a frase hebraica “weyiskön be’ohlê Sem”, “e ele habitará nas tendas de Sem”, dificilmente faria sentido ao ser atribuída a Jafé, porque a Jafé já fora concedida a bênção da expansão.
Entretanto, em que pese essas considerações, é pertinente que vejamos o modo como está estruturado a progressão narrativa do texto de Gênesis, em que as descendências são justapostas a fim de que as linhagens corram paralelas de maneira antitética. O exemplo da narrativa de Caim e Abel, Noé e a humanidade corrompida, sugerem que o arquétipo da história da redenção está baseado nessa tensão que encontra continuidade também no texto apresentado nesta análise. Assim, uma alternativa viável para o questionamento em relação a quem está se referindo a frase “habite ele”, é a de que Jafé esteja sendo fundido a Sem em termos representativos, com o objetivo de contrabalancear as sementes. Assim, Sem e Jafé deverão ser visto como um único desdobramento, figurando a linhagem santa que descende do próprio Deus.
Além disso, considerando a estrutura da benção anterior sobre Sem, o objeto direto daquela oração (v. 26) é claramente “o Deus de Sem”, numa que a relação de construto entre os termos “Deus” e “Sem” funcionam como um designativo que destaca o SENHOR nessa oração. Essa estruturação não acontece no verso 27, sugerindo que o objeto direto da benção de Noé sobre Jafé, é este, como sugere o texto hebraico.
A fusão dos horizontes entre Sem e Jafé, como já dito, reforçam a progressão histórica dos planos de Deus através da rivalidade entre as sementes, o que por sua vez, confirma também a intenção do Criador em redimir um povo para si, já que é através dessa sucessão genealógica que o Messias deverá vir para executar a promessa feita por Deus em Gênesis 3.15. O texto finda-se com a declaração de morte de Noé, que pode ser visto também como uma introdução ao capítulo 10 nos moldes da estruturação do capítulo 5.
Em termos históricos, os descendentes de Sem, de fato nunca subjugaram os povos que se originam de Cam, porém, os jafitas sim, e posteriormente essa conexão de benção entre os povos semitas e jafitas, abarcam a dimensão global do anuncio da salvação, quando, no Novo Testamento, a difusão do evangelho ganha maior proporção, e povos de origem jafita são alcançados pela mensagem salvadora de Cristo Jesus através dos apóstolos. Dessa forma, a benção de Noé se desenrola pela narrativa bíblica paralela ao próprio tema da expectação para a chegada do Messias, quando todos indivíduos de todos os povos da terra são chamados a Deus, ecoando a menção de Noé de que Jafé habitaria nas tendas de Sem, o que seria a reunião de vários povos em um único povo, regido e governado por Cristo Jesus, o Messias prometido.
João Calvino, alude a essa união entre Sem e Jafé como representando a união de judeus e gentios numa mesma família da fé, originada pela benção de Deus em Cristo Jesus trazendo-os a salvação:
É absolutamente certo que aqui se pronuncia uma profecia concernente a algo desconhecido para o homem, da qual, dado o modo como se cumpriu, somente Deus poderia ser o seu Autor. Dois mil anos e mais alguns séculos se passaram, antes que os gentios e os judeus se congregassem em uma só fé. Então os filhos de Sem, dos quais a maioria se revoltou e se retirou da santa família de Deus, se juntou e habitou sob o único tabernáculo. Também os gentios, a descendência de Jafé, que por muito tempo foram peregrinos e fugitivos, foram recebidos no mesmo tabernáculo. Pois Deus, por uma nova adoção, formou um povo daqueles que viveram separados, e confirmou uma união fraterna entre as partes separadas. Isso é feito pela doce e manda voz de Deus, a qual ele proclamou no evangelho; e essa profecia está ainda recebendo diariamente seu cumprimento, visto que Deus convida as ovelhas dispersas para formar seu rebanho, e reunir, de todos os lados, aqueles que se assentarão com Abraão, Isaque e Jacó, no reino do céu.
Por meio da postura desonrosa de Cam e da piedade de Sem e Jafé, o SENHOR mais uma vez exibe a maravilhosa intenção de redimir para si a criação e nela um povo de propriedade peculiar e particular. A graça da salvação que é ofertada a judeus e gentios encontra sua raiz na benção noética da habitação de Jafé nas tendas de Sem, e assim, o plano redentor progride um pouco mais na estruturação dos atos redentores de Deus na história.
Transição
Dessa forma, o texto de Gênesis 9.18-29, aponta para nós algumas considerações que devem ser aplicadas para nós.
Aplicações
1. A história da redenção exibe a amplitude dos decretos de Deus em incluir não somente judeus em sua linhagem, mas também os gentios.
A partir da bênção noética, o SENHOR Deus demonstra claramente que os jafitas habitariam nas tendas de Sem, isto é, a salvação não estaria restrita ou reservada apenas ao descendentes diretos ou hereditários de Sem, mas que abrangeria estrangeiros, embora estes sejam representados por um filho de Noé: Jafé.
Anos mais tarde, a própria difusão do evangelho no período do Novo Testamento revelaria o crescimento da igreja alcançando povos de toda língua, tribo, povo e nação. Os filhos de Jafé adentraram as tendas de Deus, habitando a presença do Criador como filhos adotados através da obra redentora planejada e executada pelo Deus Triuno.
2. A marca dos filhos da serpente é a impiedade, e neste caso, a desonra aos pais é o reflexo de um coração insubmisso a vontade do Criador.
Cam, assim como todo aquele que não pertence a linhagem santa, revela em seu coração a pecaminosidade e perversidade própria dos filhos da serpente. A característica da rebelião obstinada contra seu pai, exemplificar a mesma postura replicada por todos aqueles que estão alheios ao Reino de Deus em termos salvíficos.
A honra aos pais nas Escrituras está diretamente ligada a benção e ao favor de Deus. Por outro lado, a desonra liga-se diretamente a maldição prometida pelo SENHOR sobre os rebeldes e desobedientes. Tal postura não deve ser encontrada no meio do povo eleito de Deus, numa que fomos regenerados pelo Espírito a viver à luz da promessa redentora que nos garante pertencer a família da fé, da qual Deus é o Pai, e Cristo nosso irmão e Rei.
Claramente, não podemos resumir a honra aos pais, apenas aos nosso progenitores, mas a todos os que estão investidos de autoridade. De maneira que um coração sempre rebelde, contencioso e cheio de animosidade, sempre disposto a se rebelar ou a questionar sem motivos justificáveis são características anticristãs.
Busquemos, pois, evidenciar nossa eleição, através do respeito e honra às autoridades, sabendo que, através disso, estamos proclamando o senhorio do nosso Deus sobre todas as coisas, pois ele, de maneira infalível e plena, governa e reina sobre tudo e todos.
Conclusão
O plano redentor do Criador é demonstrado no texto de Gênesis 9.18-29 através da promessa de que povos para além das fronteiras de Israel foram chamados a salvação, e que a guerra genealógica mais uma vez termina com a glória de Deus e sua vitória sobre seus inimigos. Fomos chamados a habitar nas tendas de Sem, onde a bondade e o amor do SENHOR se manifestam na redenção de nossas vidas.