Gênesis 7

Série expositiva no Livro de Gênesis  •  Sermon  •  Submitted
0 ratings
· 10 views

Frente a tentativa de união entre as linhagens e a corrupção do gênero humano, o anuncio do derramar da ira de Deus traz consigo uma dupla dinâmica: salvação para a linhagem da mulher, e punição para os filhos da serpente.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 7
Pr. Paulo Rodrigues
Introdução
Continuando a descrição sobre a forma através da qual Deus consumará seus intentos salvíficos, Moisés elabora agora o início do derramamento do juízo do Criador sobre o pecado e a raça dos homens que havia se degenerado, deflagrando uma crescente de rebelião e violência sobre toda a terra, corrompendo a própria criação, e como temos visto, simultaneamente, ele apresenta também a graça salvadora de Deus sobre sua linhagem, preservando-a da ira punitiva.
Elucidação
À luz do que foi discutido em seções anteriores, é inevitável visualizar neste relato da narrativa do dilúvio, um modelo que está sendo padronizado por Deus a fim de refletir o modo através do qual ele operará a salvação de sua descendência. Notadamente, Moisés estabelece por meio da história de Noé um esquema que aponta para o desenvolvimento da história sob o controle soberano do Criador, a fim de que sua glória seja demonstrada e sua magnificência seja reconhecida por aqueles que ele têm salvado por meio da promessa e envio do Messias. Essa era a condição do povo de Israel ao ter saído do Egito. A mão poderosa de Deus havia se mostrado grandiosa, executando juízo e punição sobre os egípcios pelos duros fardos que colocaram sobre os ombros dos hebreus, os escravizando. Assim, a linhagem de Deus via-se sob a opressão dos filhos da serpente. O erguer de um intermediário entre o SENHOR e o povo, apontava para o amor benevolente de Deus em libertar seu povo de tamanho jugo.
Para que seja estabelecido esse padrão, Moisés, como temos notado, retroage até o início dos tempos, a fim de expor aos hebreus que esse ciclo de criação-queda-redenção garante a progressão histórica necessária para que Deus cumpra finalmente seu plano redentor.
Assim a narrativa da presente passagem se encaixa nesse padrão. O mundo era palco de corrupção extrema, ao ponto de somente Noé ser considerado justo por Deus (7.1). Tal situação só poderia trazer sobre a criação um único destino: juízo. Porém, é a manifestação da ira de Deus sobre o pecado que dá o tom majestoso da obra salvífica que ele tenciona operar na vida de seus descendentes. Como indica Robertson:
A aliança com Noé provê a estrutura histórica na qual o princípio Emanuel (Deus conosco) pode experimentar sua completa realização. Deus veio em julgamento; mas também providenciou um contexto de preservação no qual a graça da redenção pode operar. A partir da aliança com Noé torna-se muito claro que o fato de Deus estar conosco envolve não somente o derramamento da sua graça sobre seu povo; envolve também o derramamento de sua ira sobre a semente de Satanás.
O capítulo 7 de Gênesis analisa a execução do plano conforme anunciado e traçado desde o capítulo 6. O extermínio da raça humana garante a visualização do caráter santo de Deus, ao mesmo tempo que desvela seu amor pactual para com o povo. Assim, Noé, “instruído por Deus, construiu uma arca. [...] Ele e sua família experimentaram a salvação da parte de Deus enquanto o juízo veio sobre o restante da humanidade”.
Dessa forma, o longo relato de como o SENHOR preserva sua criação em meio ao anúncio de juízo encerra a ideia de que este episódio cataclísmico não será o fim da história, mas apenas um marco que garante a fidelidade do Criador em levar a cabo seu projeto salvador no dia final. “O ajuntamento e preservação deste remanescente é um protótipo da salvação por Deus de seus eleitos no Dia do Senhor (Mt 3.12; 24.31; 2Ts 2.1)”.
Em termos de uma intertextualidade envolvendo a passagem citada, notadamente ela serve ao longo das Escrituras como um lembrete acerca do processo histórico ao qual o mundo está submetido, tendo em vista a manifestação e consumação do que temos observado repetidamente como o plano salvador de Deus para com seu povo. Dois texto fazem alusão direta ao relato em questão no livro de Gênesis: Mateus 24.37-39 e 2Pedro 3.6.
Na primeira referência, a consideração de Cristo detêm-se ao aviso quanto aos que, por sua corrupção estão desavisados em relação a iminência do juízo vindouro através do retorno do próprio Jesus para julgar o mundo:
Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do Homem. Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do Homem (Mt 24.37-39).
Assim como já visto em estudos anteriores em relação a esta alusão, o aviso serve de contraste entre a postura que deve ser esperada daqueles a quem o Reino dos céus fora revelado, isto é, os discípulos, e os ímpios, que estão a mercê de sua própria sorte, ficando alheios a aproximação do dia em que o Filho do Homem virá em juízo, tal como aconteceu nos dias de Noé, quando sua geração corrompia-se no pecado (Gn 6.5, 11-12; 7.1).
A referência feita por Pedro em sua segunda carta é ainda mais específica, destacando através de seu texto aqueles que são reprovados por Deus, que são designados como “escarnecedores” (2Pe 3.3). Frente ao questionamento quanto ao cumprimento da promessa de salvação – tema central no livro de Gênesis – a resposta do apóstolo aos incrédulos repete a ênfase dada por Moisés no seu primeiro livro, tendo em vista o padrão que este estruturou de maneira a apontar para o movimento histórico do mundo em sentido da grande redenção por vir:
[...] Tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação. Porque, deliberadamente, esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus, pela qual veio a perecer o mundo daquele tempo, afogado em água. Ora, os céus que agora existem e a terra, pela mesma palavra, têm sido entesourados para fogo, estando reservados para o Dia do Juízo e destruição dos homens ímpios (2Pe 3.3-7).
A ordem de Pedro, tendo em vista a corrupção dos questionadores e a própria condução histórica que aponta para o derramamento do juízo sobre os ímpios e manifestação da salvação para os justos (descendência de Deus), é concentrada numa exortação à santidade frente a expectativa desse dia: “Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, 12esperando e apressando a vinda do Dia de Deus” (vs.11-12a).
Assim como a postura de Noé era de integridade e obediência (Gn. 7.5, 9), assim deve ser a postura daqueles que aguardam o Dia da Redenção. Enquanto os ímpios vivem alheios a esse fluxo histórico, rebelando-se contra de Deus, para nós, a narrativa de Gênesis 7 demonstra como em Noé a criação fora preservada, a fim de que aguardasse a salvação, e nos aponta que, um padrão de obediência e santidade é a marca indelével daqueles que descendem do próprio Criador como semente da mulher.
Já mencionamos o fato de que a aliança de Deus com Noé garante a preservação da linhagem dos eleitos do SENHOR. O que presenciamos nesse relato do capítulo 7 de Gênesis, é a execução desse plano magnifico da parte de Deus preservando toda a existência do cosmo e seu funcionamento, mesmo com o derramar de sua ira, evidenciando seu poder e comprometimento com o pacto e assim, com a promessa de um redentor para salvar sua criação, como coloca João Calvino, em referência ao verso 3:
Na sentença que vem em seguida, “sobre a face da terra”, há uma dupla consolação: que as águas, após haverem coberto a terra por algum tempo, cessariam outra vez, de modo a aparecer a superfície seca da terra; e então, que não só o próprio Noé sobreviveria, mas, pela bênção de Deus, o número de animais aumentaria tanto que se espalharia por todo o mundo. Assim, em meio à ruína, se lhe promete restauração futura.[1]
A confiança à disposição do povo de Deus manifesta nesse texto, remonta ao princípio de que a prontidão que nos é exigida frente às promessas e ordenanças do SENHOR não está baseada em algum tipo de compromisso humano ou imaginação vã, mas na aliança feita com Deus com seu servo Noé, de que preservaria o cosmo e toda a criação, até que o Messias consumasse sua obra de redenção, garantindo para nós a bênção de ter o próprio Criador em seu meio.
Tal princípio é exposto no capítulo VII parágrafo III da Confissão de Fé de Westminster, quando afirma acerca do pacto da graça:
O homem, tendo-se tornado pela sua queda incapaz de vida por esse pacto, o Senhor dignou-se fazer um segundo pacto, geralmente chamado o pacto da graça; nesse pacto ele livremente oferece aos pecadores a vida e a salvação por Jesus Cristo, exigindo deles a fé nele para que sejam salvos; e prometendo dar a todos os que estão ordenados para a vida o seu Santo Espírito, para dispô-los e habilitá-los a crer.[2]
Transição
Este posicionamento de fé e serviço a Deus, conforme demonstrado por Noé, exibe a marca espiritual presente em todos aqueles que foram eleitos para pertencerem ao SENHOR da Aliança. A confiança em Deus em meio ao juízo tendo em vista a salvação que é exposta simultaneamente a isso, serve como base tranquilizadora para o povo de Deus, garantindo-lhes a preservação mediante a palavra do SENHOR.
Cristo Jesus é arca através da qual vemos a obra redentora ser consumada, e por meio de quem adentramos para ser salvos da ira vindoura. A promessa feita a Adão, realizada parcialmente em Noé e reforçada para este, é finalmente cumprida em sua inteireza através do Messias prometido, Jesus Cristo. Enquanto a ira de Deus cai sobre o mundo, que marcha a passos largos para a perdição, contemplamos a história se desenrolar rumo a consumação dos tempos abrigados em Jesus.
Assim, o texto de Gênesis 7, aponta para nós pelos menos duas implicações, resultantes dessa mensagem, para nossas vidas:
Aplicações
1. Confiança na execução do plano redentor de Deus que nos garante a preservação do juízo.
Já temos visto introdutoriamente essa implicação do livro de Gênesis para nossa vida. Porém, o texto do capítulo 7 que lemos, é o registro pormenorizado de como Deus executa seu plano redentor providenciando a salvação de seu povo.
Não se trata de uma confiança alicerçada no solo arenoso e frágil da imaginação humana que simplesmente almeja viver tempos melhores. O mundo está fadado a sempre piorar e piorar e se degenerar e se corromper, até que o Dia Final chegue apanhando os ímpios de surpresa, arrasando-os e reduzindo-os ao pó da derrota. É a aliança com Deus que nos garante preservação, aliança que em Noé foi estabelecida apontando para o futuro onde uma salvação seria executada de maneira muito maior do que através de uma arca, mas por meio do próprio Filho de Deus, que nos garantiria não só a preservação, mas o livramento completo do poder do pecado, quando seremos não só salvos, mas glorificados.
Contudo, é necessário que entendamos que ser preservado do juízo não significa que não sofreremos danos de nenhuma sorte nessa vida, ou que passaremos por esse mundo incólumes. O pecado e suas mazelas trouxeram sofrimento e dor como frutos, e nós, experimentaremos o seu amargo sabor. O que nos é garantido é que a ira de Deus não cairá sobre nós.
Noé, ainda que salvo por Deus, pôde contemplar de perto quais são os efeitos do pecado, pois vivia no meio de uma geração corrompida. Viu como o pecado afetou toda a criação, principalmente pelo anúncio de Deus destruiria todo ser em que havia fôlego de vida (v.4). O gemido de dor da criação pode ser ouvido pelos eleitos de Deus, e cada gemido, sabemos que a hora final se aproxima. Porém, ao invés de desespero ou aflição, o coração do crente é consolado, pois sabe que tais sinais apontam para a redenção por vir.
2. Frente a execução do plano redentor, santidade e obediência são as marcas da semente da mulher.
Repetidas vezes, o texto de Gênesis 6 e 7, apontam para a postura obediente de Noé em relação ao plano que lhe está sendo revelado da parte de Deus (6.9, 22; 7.1, 5). Assim como o apóstolo Pedro apontou, não há como aguardar a salvação de outra forma, que não em obediência a Palavra de Deus.
A expectativa que devemos ter quanto ao cumprimento final da promessa, não deve ser compreendida como um convite a ficarmos parados olhando as coisas acontecerem, ou a entregarmos a uma postura preguiçosa para com o pecado, agindo como se pudéssemos viver assim, de maneira negligente, evitando o confronto diário que o pecado trava dentro de nós querendo nos fazer rebelar contra nosso Deus.
O crente prova sua filiação a Deus, odiando o pecado e mantendo-se afastado do mesmo, resistindo as tentações. A verdadeira prontidão cristã, isto é, a vida de santidade e luta contra o pecado, ancora-se na esperança da salvação que será consumada em Cristo Jesus no Dia do SENHOR. É o fato de sabermos que ele nos salvou, salva e salvará, que alimenta em nosso coração o desejo por agradá-lo e servi-lo, distanciando-nos do pecado e de suas obras corruptas.
A obediência cristã não consiste em um assentimento a uma ordem vazia, onde simplesmente atendemos a vontade de um superior, mas sim, no impulso provocado pelo Espírito Santo em responder em santidade ao plano redentor que está sendo executado dia após dia pelo SENHOR da Aliança. Isso é o que é esperado de nós; é assim que seremos transformados e lapidados pelo Espírito de Deus, para nos tornamos como Cristo, e por fim, adentrarmos a presença do Criador, num mundo renovado, assim como foi com Noé.
Conclusão
A execução do plano redentor como visto neste capítulo do livro de Gênesis, é registrado através do derramamento do juízo e da graça salvadora, como provas da promessa de Deus a Noé feita em aliança, e por sua vez, em alusão a aliança estabelecida com Adão, quando foi prometido um redentor. Frente a isso, fé e obediência marcam a estrada dos peregrinam nesse mundo caído, aguardando que sejam preservados em vida todos aquele que adentraram a salvação em Cristo Jesus.
[1] CALVINO, João – Série Comentários Bíblicos: Gênesis Volume 1 – Recife, CLIRE, 2018, p. 257.
[2] Confissão de Fé de Westminster – 17ª ed. – São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 66.